“Estamos aqui reunidos para tratar do caso de Louise Landy e Paul Grappe”. Bem-vindos a Paris e aos loucos anos 1920, acompanhando o julgamento e a vida de Paul e Louise que, num outro tempo e lugar, se apaixonaram, casaram e se viram separados pouco depois, com a chegada da Primeira Guerra Mundial na qual Paul foi combater.
Paul rapidamente sobe a cabo, o que não o impede de ser tomado pelo medo, a paranóia e a loucura, sendo várias as tentativas de escapar à frente, como pôr pólvora nas feridas. A conseguida deserção conduzirá ao ócio e à procrastinação dentro de quatro paredes, e é quando a necessidade de uma garrafa de vinho fala mais alto que chega a primeira experiência de travestismo, algo que adoptará para escapar a um julgamento marcial, ajudado pela mulher: “Observa os gestos…Uma mulher deve ser comedida…Pegas nos objectos como se fossem muito frágeis…Moves-te devagar, como se estivesses dentro de água…Ages como se tivesses sempre um pouco de frio…Pousas o copo sem fazer barulho”. Apesar de a primeira reacção não ser a melhor – “Pronto, no fundo queres que aja como se fosse um paneleiro…” -, Paul irá tornar-se Suzanne.
Entre a estranheza da mudança e o trauma pós-guerra, o casal avança para uma revolução, não apenas enquanto unidade mas, sobretudo, como seres individuais, com mudanças de poder, de protagonismo e observando os sentimentos em crescendo, que irão levar a um duelo final de uma relação trepidante.
Inspirado em eventos reais – e no livro “Le Garçonne et L`Assassi”, de Fabrice Virgili e Danièle Voldman -, “Mau Género” (Iguana, 2024) é um belíssimo álbum sobre um desertor que se tornou travesti no trauma do pós-guerra. As ilustrações de Chloé Cruchaudet, onde o preto e o vermelho são dominantes, são um triunfo absoluto, seja quando nos mostra a vida nas casernas, em imagens que parecem fotografias antigas projectadas em slides difusos, ou o delírio etílico de Paul, com um certo toque de Edgar Alan Poe. Para o final estão guardadas declarações de Maurice Garçon, o advogado que representou Louise, uma carta de Paul ou excertos do diário de Louise, bem como um curto mas incisivo texto de Fabrice Virgili e Danièle Voldman sobre a vida deste casal que foi tudo menos vulgar.
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