“A maior parte de nós nasce poeta. É apenas quando os mais velhos nos apanham e começam a ensinar-nos aquilo que nos ensinam que o poeta morre.”
Bukowski é Bukowski (1920-94), leitura obrigatória para se amar ou depreciar, mas jamais ignorar, tão raras são as oportunidades de encontrarmos tamanho despudor e liberdade de expressão. Entre a generosa e multifacetada obra que Charles Bukowski deixou, entre poesia, prosa, contos breves ou longos, prefácios e críticas, oralidades variadas e registadas – nomeadamente em forma de leituras e intervenções -, “Matemáticas da Escrita“ (Alfaguara, 2023) tem o valor acrescentado de ser um composto de textos escritos em contextos diferentes, com fundamentos e pretextos absolutamente distintos. Uma oportunidade de vestir a pele do autor e de sentir o que teria sido acompanhá-lo em períodos cruciais da sua vida, desde os primeiros textos até à consagração, percebendo o que se alterou e o que se manteve, a sua relação com a vida e a sua própria obra, com textos que vão desde 1962 a uma entrevista em 1993. É, por isso, um livro obrigatório para os amantes de Bukowski, uma colectânea de peças raras. A partilha em pequenos contos permite tomar contacto com o seu pensamento mais íntimo, imediatista e explosivo, activado por detalhes do seu quotidiano, na relação com as editoras, os leitores, as explosivas histórias e emoções em torno das mulheres, da bebida e do sexo.
Em 1970, com um auto-conceito de prostituto literário – por ganhar a vida à máquina de escrever, sempre pronto a considerar o que quer que lhe permitisse manter-se afastado das oito horas diárias de trabalho noutro qualquer ofício -, Bukowski deixa que lhe assente como uma luva a imagem de anti-herói. Tendo começado a escrever em 1944, continuava a ter de trabalhar num matadouro, nos correios ou ser porteiro, como em parte já tivera que fazer. Acima de tudo, com o provento da escrita pretendia ficar livre para o improvável e uma boa dose de selvajaria a todos os níveis, na relação entre pares e na interacção com os outros, especialmente o sexo oposto, transmitindo como poucos o prazer de contrariar convenções e imperativos do mundo literário, abominando a encenação e a mediocridade que despudoradamente atribuiu a muitos.
Neste exercício de demonstração de regularidades ou padrões no comportamento de Bukowski enquanto autor, uma das primeiras partes de “Matemáticas da Escrita” surge composta por retratos de cenas mais ou menos inverosímeis de alguém profundamente lascivo na relação consigo próprio, com a sua obra, a sexualidade, o álcool e as mulheres. São vários os textos preciosos, ao género de diálogos internos. A intensidade da sua expressão é tal que apetece gravar. Veja-se “Notas de um Velho Nojento“ (23 de Junho de 1972), retratando a experiência de ter estado num concerto dos Rolling Stones, fazendo-o de uma forma visceralmente sugestiva: “o som (da música) subiu como dez mil pardais masturbando-se no chão”. Entre prefácios e recensões encontramos considerações diversas sobre o que é criar e escrever, o valor sentimental do que se escreve, vivendo e sentindo as palavras antes de as usar. Ao longo dos textos que nos deixa, recensões, prefácios ou pequenos textos biográficos, Bukowski procura esgrimir argumentos contra a pacatez de tudo desde a existência à arte, fornecendo exemplos memoráveis, quase sempre bramidos ou imprecações.
Álcool, muito álcool; sexo, muito sexo; rudeza, muitas formas de rudeza e auto-destruição, auto-comiseração e auto-depreciação. Ao mesmo tempo, muita liberdade, honestidade e naturalidade. No conjunto, muita essência vinda de alguém que se assume como desprezível, e que escreveu que “o sinal de um bom artista é a sua capacidade de dizer, criar ou recriar uma coisa real de uma forma simples”.
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