Olhemo-nos ao espelho: haverá em cada um de nós um lado negro? Sujeitos a uma implacável receita de sombras, adversidades e infortúnios, passaria a funcionar um ego capaz de actos terríveis? Actos criminosos? Seríamos capazes de matar?
“Marionetas sem Fios” (Harper Collins, 2020), terceiro livro da escritora espanhola Tadea Lizarbe, explora estes mundos subterrâneos da personalidade. Os pólos da história são duas mulheres, espécie de espelhos uma da outra. De um lado Ada Cuevas, devastada com a morte do marido, Iker, amor da sua vida, e assim arrastada para a escuridão. Do outro Bruna Badía, uma tenaz agente da polícia com uma carreira em ascensão.
Uma frase gelada dá início à história: Ada Cuevas ouve um polícia dizer-lhe que o seu marido morreu. “Alguém pegou num machado e cortou o meu mundo“, diz. Um casamento feliz transforma-se em segundos num pesadelo por causa de um estúpido acidente, deixando Ada destroçada.
Descobrimos mais à frente que Ada não foi uma menina fácil. Em criança era irrequieta e indisciplinada, dada a entrar em casa dos vizinhos e desarrumar-lhes os móveis, só para ver a reacção deles. Vivia sob uma personalidade a que chama “A Velha Conhecida”, o lado mais sombrio da sua psique. Ao casar deixou para trás essa matriz velhaca e conheceu uma vida feliz, até à morte de Iker.
Mas agora Ada perde as estribeiras, revolta-se, e acaba por ser internada num hospital psiquiátrico, a sua única esperança o suicídio. Escreve cartas sobre a inutilidade de continuar a viver, sobre as coisas que lhe provocam raiva, sobre o seu futuro horrível sem o marido. Depois rasga tudo e atira os papéis para baixo da cama.
Certo dia entra em cena uma carta misteriosa: “Lemos o que, todas as noites, escrevias antes de te deitares. Deves saber que há muitas formas de morrer em vida. Conheces a tua luz, mas nunca exploraste a tua escuridão“. Assinada com o desenho de um cipreste, a carta muda a cabeça de Ada: de repente há algo que quer saber, um mistério a resolver que a obriga a reavaliar o seu “plano de não-vida“.
Em paralelo visitamos a infância da Agente Bruna Badía. Paralelo é o termo: também ela não foi uma menina fácil. Teimosa e com pouco respeito pelas regras, desafiadora e curiosa, metia-se em sarilhos na escola, tal como Ada Cuevas. Também Bruna tinha um alter ego para esse lado mais negro: “A Indiscreta”, fruto da sua ilimitada curiosidade.
“Marionetas sem Fios” desenrola-se no gume afiado dessas duas personalidades, criando um devaneio gótico com algumas pinceladas de surrealismo. Desengane-se quem espera encontrar nestas páginas um policial clássico: o livro de Tadea Lizarbe manda às urtigas a plausibilidade da história e vive no expressionismo, explorando uma trama que cruza a doença mental com a teoria da conspiração: somos todos marionetas, a questão é: quem puxa os cordelinhos?
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