Ao longo dos tempos, a família tem sido um dos grandes temas e inspirações literárias, centro nevrálgico de poemas, ensaios ou romances. É precisamente a família – e a sua implosão – que está no centro de “Margarida Espantada” (D. Quixote, 2020), romance de Rodrigo Guedes de Carvalho que, com o sobressalto de um thriller, nos serve uma história sobre irmãos. Uma história que deixa no ar a eterna interrogação sobre o que une e alimenta uma árvore genealógica, um sentimento que estará algures entre a cumplicidade solidária do sangue e a de se fazer parte de um aglomerado de pessoas que não se escolheram – e que, tantas vezes, se vão aturando já sem grande convicção.
Uma família alargada, onde cada um trata de carregar as suas cruzes, traumas e memórias: António Carlos, habituado a deixar “sangue fresco por cima de sangue pisado” na mulher Isabel Rita, e que vai mantendo uma relação a céu aberto com as suas amantes, a quem começa também a estender os tentáculos da violência e do abuso; Manuel Afonso e Sara Lúcia, pais tardios, às voltas – como quase todos os pais – com os porquês do choro da sua criança; Margarida Rosa, alguém que “decidiu logo em pequena que nada desta vida lhe causaria dano” e que, depois do falecimento dos pais, “esteve a encaixotar o pouco que tem em adulta para regressar à infância”, ficando a tomar conta da casa onde todos viveram os seus primeiros anos – uma casa onde, desde cedo, se pressente uma presença externa, ponte para o universo de “Coisa Ruim”, filme que contou com argumento de Rodrigo Guedes de Carvalho; Joana Ofélia, a mais nova dos quatro irmãos – ela, Manuel, Margarida e António -, nascida quando já não era esperada, guiada pelos outros como uma presa fácil e que, só em adulta, se reconciliou com o seu nome de baptismo; e, por último, António Carlos, actor e em tempos um adolescente “particularmente enérgico e desobediente, caótico e explosivo de pensamentos e acções, um revolucionário à procura de uma causa”, que passou a desprezar e a provocar o pai, o grande e conhecido empresário Carlos Duval. Irmão que desenvolveram, cada um à sua maneira, “técnicas de sobrevivência ao desemparo”, trocando o lema dos mosqueteiros por um bem mais reservado cada um por si.
A história dos irmãos – e o inevitável ajuste de contas – vai sendo contada enquanto, no tempo presente, a inspectora da velha guarda Ainda Santos e Paulo Paulino, a jovem promessa da psicologia forense, têm entre mãos o chamado “caso Duval”, um mistério revelado em conta-gotas no qual o leitor irá testar as suas qualidades de detective amador.
Um romance-thriller no qual Rodrigo Guedes de Carvalho não poupa na violência, espremendo a linguagem como quem torce um pano molhado antes de nos atirar com ele à cara, perfurando as muitas camadas de pele até nos chegar ao osso. Pelo caminho, enquanto folheamos o álbum de fotografias e memórias da família Duval, tomamos em mãos o peso da infância, esquivamo-nos como podemos ao horror do mundo e lemos, “numa língua de hieróglifo, incompleta e indecifrável”, a chave para sobreviver à instituição familiar: «Cortas as correntes e libertas-te, cortas as raízes e morres». Um dos grandes romances portugueses publicados em 2020.
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