Para os leitores de Patrícia Müller que apreciaram a personagem feminina forte e determinada que existia em “Uma Senhora Nunca”, saber que outro dos seus romances é sobre a freira que foi amante do nosso Rei D. João V parecerá, desde logo, um enredo interessante, no relato de mais uma mulher forte e destemida – e é isso mesmo que encontramos em “Madre Paula” (Edições Asa, 2014).
“João apareceu-me como da primeira vez que o vi: acima do mundo e dos outros homens, ricamente vestido, confiante, soberano. Era tão soberano que a minha cabeça baixou sem querer. Olhei para o lado e vi que todos os outros à volta tiveram o mesmo impulso.”
Ao lermos “Madre Paula”, não é por João que nos deixamos vislumbrar. Há, em Paula, muito mais garra e soberania. A forma maquinadora e calculista com que esta mulher se faz crescer e notar, isso sim é soberano. As artimanhas sedutoras são ferramentas que adquire, mas a
inteligência é-lhe natural. E é essa a forma que Müller encontra para ir fazendo o leitor ficar tão agarrado a Paula como o próprio Rei.
Ainda assim, a narrativa tem momentos muito intensos criados por El Rei, especialmente o tempo que durou tal paixão e o fulgor que levou o soberano a contornar as Leis e a desafiar tanto o Clero como a Rainha.
“– Sei tudo de ti. E quero que saibas tudo de quem sou, na esperança de que me possas amar mesmo assim. Quero abrir-te ao meio e encher-te de mim. Quero sentir o teu coração bater através do peito na minha boca. (…) Todos os meus mimos são teus e os teus inimigos, meus inimigos mortais. Quero entrar em ti e não mais sair, os teus pés entrelaçados no fim das minhas costas, as tuas pernas enroladas à volta da minha cintura, a tua garganta aberta e pronta para o punhal que é o amor.”
O poderio da linguagem escolhida pela autora dá o toque de época que o enredo requer, mas cria também o ambiente de pecado em que este amor se desenvolve e o rumo destrutivo que desde cedo se antecipa, especialmente por Paula ser dona de um espírito menos domável às exigências de um convento e das convenções da época. Ainda assim, o ciúme e a loucura de ambos contribuem para o sofrimento que causam um ao outro.
“O ciúme é uma planta sem semente; desenvolve-se por enraizamento como a framboesa que se inviscera em qualquer lugar que os seus galhos tocam. Não precisa de água ou ajuda e assim era o meu medo: autoalimentava-se.”
Há outro amor e outra devoção nas páginas deste “Madre Paula”, o amor de Luz pela irmã, que faz dela uma guia, uma verdadeira luz quando Paula mais precisa. E essa devoção é também muito interessante de se ler: uma mulher que aceita o seu destino, o de ser uma sombra que ampara quem mais força teve para desobedecer ao destino ditado pela pobreza e o encerramento conventual. Outro amor aqui relatado é o amor maior, o milagre do nascimento. Para o reinado era apenas mais um bastardo; para Paula, a continuação de um amor; para Luz, a certeza da dedicação eterna à família.
“– Sua Majestade pede perdão pela demora. As palavras entraram directamente para a minha memória, não passaram por coração ou nervo, esses estavam ocupados a abraçar José, beijar
José, observar José, sentir José, perceber José, tocar José, afligir-me por José, amar José.”
“Madre Paula” é um romance de espera, de esperança, de desespero, de alguma vingança e de um destino fadado, desenhado e ainda assim, desejado.
“Quem protegia quem? A presença de José na minha vida era um bálsamo que me salvava do tédio de esperar pelo rei. O filho veio substituir o pai. A ausência dele era o vazio de antes.“
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