Marie Curie (1867-1934), alguém que derrubou barreiras de género e cujo nome se tornou incontornável na História da Ciência, é apresentada como uma personagem maior do que a vida na biografia “Madame Curie” (Livros do Brasil, 2022), escrita pela mais nova das suas duas filhas, Ève Curie (1904-2007).
Esta edição contém um prefácio da investigadora portuguesa Elvira Fortunato, que resume na perfeição a personalidade de Marie Curie e os marcos da sua carreira, incluindo a descoberta de novos elementos químicos e o estudo da radioactividade. Por tais empreendimentos, tornou-se, em 1903, a primeira mulher doutorada em Física, tendo recebido o Prémio Nobel dessa área no mesmo ano, juntamente com o marido, Pierre Curie, e Henri Becquerel. Três anos depois, foi a primeira mulher a ocupar uma cátedra universitária em França e, em 1911, um segundo Prémio Nobel, desta vez da Química, fez dela não só a única mulher duplamente nobelizada até à data, como também a única personalidade científica a receber tal distinção em duas áreas diferentes das ciências naturais. O reconhecimento prolongou-se para além da morte, tendo sido a primeira mulher sepultada no Panteão de Paris.
Se Elvira Fortunato não esconde a admiração pela sua predecessora, esta é ainda mais notória na escrita de Ève Curie, cujo envolvimento emocional afasta o livro das biografias mais académicas, fazendo-a recriar com grande vivacidade o percurso da mãe, desde o tempo em que se chamava Maria Skłodowska e crescia numa Polónia ocupada pela Rússia, no seio de uma família que, embora empobrecida, lhe proporcionava uma “uma atmosfera intelectual de rara qualidade”. Através da correspondência trocada com familiares e amigos, é-nos revelado o empenho da jovem em causas sociais e patrióticas, bem como a vontade de aprender, que a leva a frequentar círculos de ensino ilegais e, mais tarde, a emigrar para França, visto ser-lhe interdito o acesso às universidades do seu país, em virtude do seu sexo.
Acompanhamos a sua existência espartana em Paris, o sucesso nos estudos e o desenvolvimento da relação com Pierre Curie, com quem casa, nascendo assim uma parceria de “dois cérebros de génio que pensam juntos”. Exasperamo-nos com as múltiplas dificuldades que enfrentam e surpreendemo-nos com o idealismo científico e humanista que os faz abdicar do conforto em que poderiam viver se patenteassem as suas descobertas. Sofremos com a morte de Pierre, bem como com o luto de Marie, para em seguida nos alegrarmos com a força que a anima a “educar duas filhas, ganhar a vida para três pessoas e manter-se com brilho como mestre de uma cadeira universitária”, prosseguindo as actividades de investigação e introduzindo a radiologia no diagnóstico e tratamento dos feridos da Primeira Guerra Mundial.
Infelizmente, a proximidade entre biógrafa e biografada leva a primeira a escamotear, em poucos parágrafos e com parcas explicações, uma polémica que transtornou a vida da segunda. Quem conhecer a história, saberá que se trata do suposto caso entre Marie Curie, já viúva, e um colega casado, mas os outros leitores poderão não entender de que calúnias se queixa a autora.
A vida de Marie Curie é uma saga de superação de dificuldades, perante a qual não podemos deixar de imaginar o conhecimento que a Humanidade já poderia ter alcançado, se o potencial de tantos seres humanos não fosse tolhido por sistemas opressivos, pela pobreza, ou por discriminações várias. O seu triunfo sobre preconceitos que ainda persistem torna o seu exemplo ainda mais brilhante e digno de reflexão.
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