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Lugares comuns: uma crónica com o Folio ao fundo

Por Nelson Ferreira · Em 30/09/2016

Memória. Mas evito o verbo lembrar, ou melhor, evito dizer que me lembro. O exercício é reviver as viagens transatlânticas que fiz durante a infância e adolescência, entre Funchal e Lisboa. Implicavam uma estadia na Avenida 5 de Outubro, por norma em regime de meia pensão (quatro estrelas); o aluguer de um carro; uma ida a Fátima com paragem na cidadela fortificada, ou vila medieval, de Óbidos. Estou na fase tardia destas viagens, são tempos de rebeldezinho de trombas, no banco de trás, imerso no volume máximo de reprodução do discman.

– Baixa isso, vais ficar surdo.

Ainda ouço a voz da minha mãe debaixo das camadas de guitarras distorcidas de James Hetfield ou Darrell Abbott.

Anos antes, as paisagens menos fecundas da A8 ainda me entusiasmam, quiçá por estar longe de casa e ferver com descolagens e voar e sentir o alívio, quando aterro, de não morrer num avião a despenhar-se.

A paragem em Óbidos é cumprida com a mesma fé que empregamos no Santuário de Fátima e no centro comercial anexo, onde compramos água benzida engarrafada. Na Rua Direita, como manda a tradição, paramos de imediato para o rito do café, enchendo meio bucho para ir sem roeza (N. do T. – sem fome) à almoçarada que se avizinha. Pão com chouriço. Não sei se é memória do passado fim-de-semana ou de há mais de duas décadas. É um belo rácio entre chouriço, ou seja muito, e pão artesanal, saído do forno a lenha.

Estou no início desta semana. Os visitantes da cidadela continuam iguais aos princípios, ou leis não escritas, do turista de excursão: o interior de Óbidos é circunspecto ao trajecto frente-trás na Rua Direita. E aqueles cujas pernas têm menos varizes ou os bravos sem vertigens (longe de ser o meu caso) não vão embora sem percorrer o alto da muralha. Há ginja em copos ou chávenas de chocolate, uma campanha de charme moderadamente alcoolizada, e há muito sotaque português do Brasil esvoaçando entre conversas soltas, sem contexto para um bisbilhoteiro de passagem. Generalizo à minha companheira que parece haver um certo fascínio do turista brasileiro com o despontar da Era Colonial, como se fosse um sítio destes a expelir Pedro Álvares Cabral, que zarparia de Lisboa para “descobrir” o extenso fértil da América do Sul onde habitam hoje.

– Histórias mal contadas.

Fomos a Óbidos pelos livros. Em boa verdade, não queríamos ginja ou fotografias com animadores vestidos de médicos da peste. É bem sabido que a cidadela agora se apresenta como Vila Literária, um projecto da Ler Devagar, que também junta esforços da Câmara Municipal e das Produções Fictícias. O novo fôlego que ali se inspira equilibra a rotina turística bem consolidada com a do visitante leitor, outra estirpe de turista: mais explorador do terreno, que se aventura na oferta cultural do Fólio, sendo capaz de se entusiasmar com a exibição da “Balada da Praia dos Cães” ou com o “talk” em que participa Henrique Monteiro, cara do semanário Expresso e aspirante a humorista em ambiente informal. Esta estirpe também é capaz de passar uma boa hora a admirar a Livraria do Mercado, ou confidenciar à parceira que, de facto, é admirável tornar uma igreja numa livraria, como é o caso da Livraria de Santiago, e que deviam fazer o mesmo com a Basílica da Estrela, ou talvez torná-la numa biblioteca pública que não pagasse IMI.

– Que é coisa de escandinavos ateus, esse milagre civilizacional.

É terça-feira. Estamos num dos vários miradouros da cidadela e lá vegetamos. Um deserto sem vivalma. Arrastamos as cadeiras de uma esplanada, fechada, até onde nos é permitido – para lá é queda nas silvas, talvez caso para lanho, talvez morte. A vista é para cinco ou mais adjectivos de lisonja. Lemos lado a lado durante mais de uma hora. Não vejo ninguém a ler em Óbidos. Parece não haver tempo.

De novo dentro desses espaços triunfantes que agregam papel recém-chegado da fábrica e espécimes bafientos que valem um euro. Procuro boa luz para as minhas fotografias. Quero enquadrá-la numa parede de livros, mas ela não deixa. Avisa-me para ficar quieto e estar naquele momento, partilhado entre nós, sem lentes ou ecrãs. Encontro um par de livros da Antígona, preço mínimo garantido e ela aprova a sua qualidade. Sei que, a julgar pelo restante catálogo da editora, são pérolas perdidas. Compro ambos e digo-lhe que quero coleccioná-lo. O catálogo todo da Antigona, isto é. Ela diz:

– Nunca vais ler essa porcaria toda.

FOLIOFolio 2016

Nelson Ferreira

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