Em 1957, o escritor argentino Jorge Luis Borges sacava de mais um coelho da cartola e publicava, com a ajuda de Margarita Guerrero, “Manual de Zoologia Fantástica”. Um bestiário moderno que, depois de mais algumas expansões, viria a transformar-se no definitivo “Livro dos Seres Imaginários”, reunindo mais de cem animais imaginários para todos os gostos: animais sonhados por gente como Poe, C.S. Lewis ou Kafka – deste último fala-se de “…um animal com uma grande cauda, de muitos metros de comprimento, parecida com a da raposa“; animais esféricos, animais dos espelhos – antevê-se aqui a revolta dos reflexos servis – ou animais metafísicos – entre os quais a estátua sensível e o animal hipotético; o Aplanador, que se alimenta de ervas e raízes, não tem inimigos – excepção feita aos insectos -, e é parecido com um elefante apesar de ter dez vezes o tamanho deste; o Asno de Três Patas, que tem três cascos, seis olhos, nove bocas, duas orelhas e um chifre; o Beemot, “…uma amplificação do elefante ou do hipopótamo, ou uma versão incorrecta e assustada desses dois animais“, o Catópleba, uma “fera de tamanho médio e andar preguiçoso“. Ou, também, outros mais conhecidos como a Ave Fénix, o Cérbero, o Centauro, Dragões ou Elfos, num livro que apresenta referências e fontes que vão da Bíblia aos irmãos Grimm, das Mil e Uma Noites a Plínio, de Robert Burton a Fraser.
“Lista Negra/Black List” (Monsieur Komodo, 2019), de Rui Guerra, é também um livro de animais inexistentes, ainda que, aqui, se dê uma inversão. Enquanto Borges tratou de escrever sobre as criaturas imaginárias, deixando ao leitor a tarefa de as desenhar com a sua imaginação, Rui Guerra ilustrou-as de forma detalhada, cabendo ao leitor criar as suas próprias histórias sobre estes estranhos animais com uma certa parte de humanos.
Há, porém, um outro móbil para esta Lista Negra, que tem a ver com a acção humana que, dia após dia, vai acrescentando mais nomes a uma série de animais que estão em extinção ou lá muito perto: “Há cerca de 500 anos, quando os europeus inauguraram uma vaga de colonização por todo o mundo, deram também início a um ciclo de extinção que até hoje não conseguimos conter. Este livro é sobre essas espécies, cujo desaparecimento está directamente ligado à actividade humana, sendo, por isso, um livro sobre ganância, estupidez, arrogância, crueldade e inconsciência. A extinção está longe de ser um assunto feliz”.
Nestas páginas descobrimos animais engravatados, com ar de CEO`s zangados; coelhinhos com golas feitas de folhos; um réptil ao telefone, intimidado por um tipo com ar de investigador privado; outros mais bem-dispostos, que poderiam estar a regressar de um festival de música onde acamparam; plumas caprichosas, a mostrar os músculos em prados verdejantes; pombos humanos a alimentarem os seus semelhantes.
Alguns deles poderão ainda ser observados ao vivo, outros já se extinguiram há muito e alguns – arriscamos a maior parte – talvez nunca tenham existido. Afinal, “ao esfumar-se a luz de uma forma de vida, a realidade é engolida pela ficção”. De qualquer forma, esta verdade permanece como uma derrota humana: “A imagem não substitui aquilo que representa”.
É um território de mitos e lendas, com muito erotismo e tortura humana, onde se jogam jogos de tabuleiro enquanto se puxa de um cigarro, fazendo figas para que a expulsão do paraíso, aqui retratada, não seja uma antevisão para o futuro do globo terrestre. Mais uma bem desenhada edição com o selo da Monsieur Komodo.
Rui Guerra é licenciado em Design pela Universidade de Aveiro, e tem trabalhado como designer de comunicação em projectos nacionais e internacionais. Criou, em 2009, o projecto de ilustração e edição
Monsieur Komodo, no qual publicou “Aqui Habitam Fantasmas” (2013), “Shades of Birds”(2017), “Caderno Nocturno” (2017) e “Seven Layers of Solitude” (2018).
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