Michèle Petit é antropóloga de formação e investigadora do Laboratório de Dinâmicas Sociais e Recomposição dos Espaços, do Centre National de la Recherche Scientifique, França e, desde 2004, coordena um programa internacional sobre “a leitura em espaços de crise”. Quem acompanha as dinâmicas e problemáticas da leitura, quem reflecte sobre a importância da palavra e dos livros nas crianças e jovens, conhece bem o seu trabalho e a sua obra publicada.
“Ler o Mundo” (Faktoria K de Livros, 2020 – chancela da Kalandraka) – com o subtítulo Experiências de transmissão cultural nos dias de hoje – é um manifesto lúcido e necessário, “uma apologia. Para que a literatura, oral e escrita, e a arte sob todas as suas formas tenham um lugar na vida de todos os dias, em particular na das crianças e dos adolescentes”.
A autora partilha com o leitor exemplos de práticas bem-sucedidas, que associam a leitura e a palavra à memória e à imaginação, mas também à história, à geografia, ao corpo, ao teatro ou à dança – em resumo, a toda experiência de ordem sensível ou intelectual que nos coloca em contacto directo com o outro e com o mundo.
O livro procura também responder a questões como “para que serve ler? Porquê ler hoje? Porquê incitar as crianças a fazê-lo? E ainda: quais são os fundamentos da importância da literatura, mas também, de forma mais genérica, da transmissão cultural?”.
Michèle Petit dialogou com mediadores e “educadores pela arte”, sobre o engenho de enfeitiçar aqueles que se encontram afastados da literatura e da arte. Ouviu múltiplas vozes sobre experiências leitoras. Hoje, neste seu livro, partilha o saber resultante dessas conversas, encontros, estudos e de muitas leituras sobre a importância do livro e da leitura no crescimento dos jovens, e a sua construção enquanto pessoas.
É um livro sobre a formação de leitores e, nesse sentido, interessa a professores, a pais, a bibliotecários, a agentes culturais e a todos aqueles que amam os livros e acreditam nos poderes da leitura. A formação de leitores é um processo: sabemos onde começa mas não onde termina. Criar a necessidade, o hábito de leitura, é o objectivo. Ler e dar a ler para que cada leitor, desde mais tenra idade, seja um cidadão competente, atento, reflexivo e crítico, que desempenhe um papel activo na criação de sociedades que se querem livres e democráticas. Cidadãos leitores que sejam capazes de ler o mundo. Recorda-nos que, quando o adulto mostra à criança um álbum infantil, quer simplesmente dizer-lhe: “apresento-te os livros porque uma imensa parte do que os seres humanos descobriram está aqui escondido. Poderás ir lá procurar respostas que te ajudam a dar sentido à vida, saber o que os outros pensaram das perguntas que te fazes – não estás sozinha para as enfrentar“.
“Para que serve ler?” Serve para estimular a fantasia e a criatividade, respondem muitos. É uma companhia, responderão outros. Michèle Petit, ao longo do segundo capítulo do livro, lembra que as respostas encontram abrigo em diferentes espaços e tempos, assim como na riqueza da intertextualidade, pois todos nós nos apropriamos dos “textos lidos sem sequer pensar nisso”. Ler é multifuncional: “serve para descobrir – não pelo raciocínio, mas pela descodificação inconsciente – que nos assombra, o que nos assusta”; serve para “elucidar a nossa experiência singular” ou, simplesmente, para “encontrar uma força, uma intensidade que acalma, qualquer coisa inesperada que reactiva a actividade psíquica, o pensamento, a narração interior”. Sem esquecer que ler serve, também, para “encontrar fora de si palavras à altura da própria experiência, figurações que permitam pôr em cena, de uma forma distanciadas ou indirecta, aquilo que se viveu, e nomeadamente os capítulos difíceis de cada história”.
As palavras. As palavras servem para comunicar a narrativa, a história, mas também para evocar momentos, sentimentos e encantamentos. O fascínio pelas palavras começa quando, em criança, ouvimos “aquelas sílabas ininteligíveis que a nossa mãe e os que nos são próximos pronunciam diante de nós. Tudo isto para dizer que no princípio não existia o verbo, mas a voz”. A voz que provoca em nós o espanto.
A inquietude dos livros e da leitura não é dissociada das bibliotecas, esses lugares onde se “suscitam passagens entre oral e escrito, corpo e linguagem, campos de saber, práticas culturais, culturas”, espaços de maravilhamento e descoberta. Espaços onde aprendemos a ler o mundo.
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