É um daqueles livros que assentaria como uma luva ao realizador Tim Burton, isto se um dia este cometesse a proeza de voltar à sua antiga forma. “Lanny” (Elsinore, 2019), escrito por Max Porter, é um daqueles livros difíceis de categorizar, algures entre o romance e a fábula, o diário e o puro exercício experimental de géneros e caminhos literários, constituído por diferentes fragmentos para os quais o leitor precisará de uma cola especial – isto se os quiser unir.
Estamos numa aldeia inglesa, não muito longe da agitada Londres, igual a tantas outras aldeias: tem o pub de serviço, uma igreja, lojas e casas de tijolo vermelho. Tem, também, uma versão muito própria do nosso bicho papão, que aqui recebe o nome de Falecido Papá Dentilária, uma figura lendária feita de folhas de hera, que tem estado a dormir mas que parece ter acordado com a chegada à aldeia e a voz de Lanny. Um rapaz que, segundo o relatório escolar, “tem um talento inato para a coesão social. Não são raras as vezes em que acalma uma turma agitada com o uso oportuno de uma piada ou canção“.
A mãe de Lanny era actriz, tendo entrado em peças de teatro e feito alguma televisão, estando actualmente a escrever “um romance de terror e mistério“; quanto ao pai, vai misturando dias de rotina com pequenos prazeres. Na sua visão da aldeia e vista à distância de Londres, “o espaço entre edifícios, o espaço em torno dos edifícios“, é uma ideia absurda, considerando difícil de funcionar algo que está assim organizado.
Fazendo jus ao estado de alucinação da narrativa, os narradores sucedem-se e atropelam-se. Entre estas vozes está o próprio Falecido Papá Dentilária, que se chega à frente desenhando um auto-retrato indestrutível, transmissível e enigmático, escrito na terceira pessoa: “Está representado em chaves de abóbadas, em estênceis decorativos, em tatuagens, no logótipo do clube de críquete, tem sido toda a ninharia e todo o lixo ingleses, moral em troca de dinheiro, mascote e maldição. Existe em forma de histórias em todos os quartos de todas as casas deste lugar. Está neles como a água. Animal, vegetal, mineral. Eles constroem novos lares, destruindo-lhe o espaço verde, e ele assoma adaptado, para assustar e definir. Neste lugar, ele é tão antigo quanto o tempo“.
Tal como o bicho papão, Dentilária serve de aviso à navegação, e há uma série de cantilenas capazes de assustar os mais catraios: “Tens de rezar e o bem praticar, ou o Falecido Papá Dentilária virá para te levar“. Ou, ainda mais à séria, “Bate bate, corta corta, lá vem ele, o Dentilária, traz o cepo e a faca torta, bate bate, corta corta, vai cozer-te os ossos todos com legumes lá da horta“.
Figura também central neste livro é Pete, que dá aulas de pintura a Lanny, e que tem uma notória aversão à escola tradicional, onde segundo ele não existe a aceitação da diferença. Um tipo que, quando as coisas dão para o torto, é aquele a quem todos apontam o dedo.
Deixando no ar questões como “e se disséssemos o que realmente sentimos“, “Lanny” faz um retrato pouco animador da sociedade actual, lugar onde muitas vezes se tem de esquecer para poder sobreviver. Há poesia, comentários políticos, bocas de treinador de bancada, coscuvilhices, pensamentos económicos, insultos, mas sobretudo “insuportáveis disparates lírico-práticos do quotidiano destas gentes” – de todos nós, claro está. Provavelmente o mais estranho livro que irão ler este ano.
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