Cerca de quatro anos após ter distinguido Kazuo Ishiguro com o Prémio Nobel da Literatura, a Academia Sueca não estará, certamente, arrependida da sua decisão, face ao brilhantismo do mais recente trabalho do autor, intitulado “Klara e o Sol” (Gradiva, 2021).
Trata-se de um romance que se integra na longa tradição literária de análise de uma sociedade a partir do ponto de vista de algo ou alguém que lhe é marginal. Neste caso, a protagonista e narradora, Klara, é aquilo a que se chama uma AA – uma Amiga Artificial, concebida para acompanhar e suprir as carências de crianças e adolescentes. Embora o termo “androide” nunca seja utilizado – já “robô” surge muito pontualmente, com intenção depreciativa –, a sua natureza é clara desde o início, quando a conhecemos no interior da loja onde se encontra em exposição, tão ansiosa por ser escolhida e levada para uma casa, como por conhecer mais do mundo exterior.
A obra pode ser classificada como ficção científica, visto situar-se num futuro próximo, no qual a inteligência artificial e a manipulação genética são omnipresentes. Porém, felizmente, este não é o tipo de ficção científica que se deslumbra com pormenores tecnológicos – os quais, aliás, quase nem são mencionados. Aqui, as possibilidades da ciência e da técnica são um recurso para reflectir acerca da natureza humana, do amor e daquilo que torna cada pessoa única.
É possível traçar alguns paralelismos entre Klara e as representações ficcionais de outros androides, como por exemplo o protagonista do filme “A. I. – Inteligência Artificial”, de Steven Spielberg. Ambos estão programados para amar incondicionalmente os seus humanos, mesmo sem a devida reciprocidade, em nome de um ideal de humanidade que os próprios humanos não alcançam. Ambos descobrem a crueldade de que as pessoas são capazes e desenvolvem por si próprios uma espécie de raciocínio mágico. Contudo, Klara distingue-se porque aceita a sua natureza, nunca manifestando o desejo de ser humana. Além disso, mesmo em comparação com os outros AA que a rodeiam, possui capacidades notáveis de observação e aprendizagem, ainda que estas nem sempre lhe permitam entender as pessoas: “estava a tornar-se claro para mim o ponto a que os humanos, no seu desejo de fugir à solidão, manobravam de forma complexa e difícil de sondar“.
A descrição hábil do raciocínio de Klara, incluindo a maneira como processa as imagens que recolhe e as memórias que constrói, pode parecer estranha no início, mas depressa é interiorizada como mais uma faceta desta personagem peculiar. A par de outras figuras complexas, existem diversos pormenores interessantes que não revelaremos aqui para não negar aos leitores o prazer de os irem descobrindo e unindo as peças que compõem este mundo futurista. Apesar de todas as surpresas, Ishiguro preserva a credibilidade da história até ao fim.
Da mesma forma que nunca descreve fisicamente Klara, o autor nunca oferece uma caracterização psicológica directa das outras personagens. Avaliamo-las pelo comportamento com Klara e pelas interacções que estabelecem entre si. Mais do que uma opção literária, talvez possamos ver aqui um desejo do autor de corroborar uma das principais conclusões da protagonista: aquilo que torna cada pessoa única não reside nela, mas sim no conjunto daquilo que é para os outros.
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