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“Inyenzi ou as Baratas” | Scholastique Mukasonga

Por Ana Ilhéu · Em 30/12/2024

Nas palavras de Scholastique Mukasonga, “Inyenzi ou as Baratas” (Livros do Brasil, 2024) é “um memorial textual, um sudário para cobrir os corpos dos que já partiram”. Situamo-nos no Ruanda, anos 60-90 do século passado, e facilmente ocorrem palavras-chave (ou expressões) como estratificação dos povos, tensão racial, opressão, violência e genocídio – este último, talvez tenha sido um dos maiores de sempre. Na primeira pessoa e sem efabulações, Mukasonga questiona qual o sentido da barbárie, e por que continua a ser tão difícil conceber sociedades e governações pluriétnicas.

Scholastique Mukasonga nasceu no Ruanda em 1956, tendo testemunhado a violência e a humilhação dos conflitos étnicos que abalaram o seu país. Acompanhou a segregação da sua família, acabando por fugir para o Burundi. Em 1992, dois anos antes do brutal genocídio do seu povo tutsi, estabeleceu-se em França. Pelo menos 37 membros da sua família foram massacrados. Doze anos depois surge “Inyenzi ou as Baratas”, agora editado em Portugal pela Livros do Brasil (2024), um relato autobiográfico que marcou a entrada de Mukasonga na literatura. Trata-se do seu primeiro livro, escrito em 2006, quando já estava a viver em França. Recordando a família no fim dos anos 50, no Ruanda, deixa bem vincada a ténue linha que pode separar a normalidade da selvajaria. Pese embora tivesse apenas três anos quando tudo começou, as imagens perseguiram-na mesmo quando já estava em segurança.

Na efectivação do mal, o ser humano reinventa práticas hediondas como se nada aprendesse com a história. Acompanhamos a descrição feita por Scholastique Mukasonga do que foi acontecendo ao povo Tutsi, os sinais premonitórios de catástrofe e as evidências do desinteresse internacional; a forma e o impacto de como as coisas aconteceram; o transporte do povo Tutsi nos camiões em direcção a um destino incerto, sem hipótese de escolha, acabando despejados em Nyamata, no Bugesera, num campo para onde só iam os que tinham caído em desgraça e de onde dificilmente se sairia ileso, no corpo e na alma. Passaram então a ser os Inyenzi – isto é, as baratas -, colocados sob o domínio dos militares que antes haviam prometido protegê-los, mas que na realidade pretendiam controlá-los – e, se necessário, exterminá-los, como se faz com as pragas. Uma verdadeira prefiguração do genocídio em massa que ocorreria mais tarde, em 1994.

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Depois de, sozinha, ter conseguido fugir para o Burundi e posteriormente para França, onde actualmente vive, Scholastique Mukasonga levou muito tempo, muitos anos, a decidir regressar ao Ruanda. Faltavam-lhe forças para a viagem e um sentido para tal esforço. Ninguém a esperava lá, todos os que conhecia tinham sido assassinados. Curiosamente, quando conseguiu regressar, já em 2004, voltou a sentir-se em casa, ainda que já não precisasse de andar de cabeça baixa, já não se sobressaltasse à vista de um uniforme militar, já não encontrasse postos para controlar os da sua etnia. Em 2004, Mukasonga quis ver tudo – para ela, o seu país era belo, pela simples razão de o ser.

Scholastique Mukasonga revela na perfeição como, depois da barbárie, os sobreviventes enfrentam ainda o desafio de fazer o luto. Entre a procura incessante dos corpos em valas comuns e outros tantos locais impensáveis, recuperar os restos era como reconstruir a dignidade da perda e da identidade. Em “Inyenzi ou as Baratas”, dá-se ao direito de sentir e de expressar a zanga dos sobreviventes perante o desaparecimento de tantas vidas, o desperdício dos sonhos, o sacrifício em vão de tantos – dos que partiram mas também dos que ficaram a lidar com o trauma. Habilmente, Mukasonga transforma tais sentimentos em memórias, desfiando nomes e histórias, conferindo dignidade e importância aos desaparecidos – para que sejam mais do que isso, do que desaparecidos.

Assumiu uma missão, viver em nome de todos. Com a sua escrita, alcançou o desejo de contrariar a vontade dos assassinos do seu povo ao tentarem exterminar também a identidade dos desaparecidos, impedindo que fossem identificados, registados e recordados. Construiu um livro que é um túmulo de papel e, ao fechar o livro, o leitor sentir-se-á tentado, em memória de um povo, a baixar os olhos e ficar em silêncio.

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Ana Ilhéu

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