“Intimidades” (Quetzal, 2022), de Katie Kitamura, revela ao leitor uma narrativa persuasiva, carregada de espaços que minguam (e sufocam) à medida que a intimidade aumenta. Quem está mais susceptível à intimidade é a protagonista. Uma mulher, de quem nunca sabemos o nome, mas que revela, logo nas primeiras páginas, vários traços de personalidade. Intérprete de profissão, mostra-nos um carácter complexo e com propensão natural para o rigor: “O meu trabalho é tornar o espaço entre as línguas o mais pequeno possível”.
Ao rigor e à tensão que caracterizam o seu trabalho, contrasta um vida pessoal desafogada e desesperançada, com que chega a Haia para desempenhar a sua função nos bastidores do Tribunal, de forma quase invisível e em tom de sussurro: “Havia um certo grau de tensão intrínseco ao Tribunal e à sua actividade, uma contradição entre a natureza íntima da dor e a praça pública onde tinha de ser exibida”.
O teatro processual e mediático dos processos parece ganhar contornos reais quando trava conhecimento com um homem, cuja catástrofe mais íntima se tornara alvo de mexericos fúteis e maliciosos. Porém, quando o curso da vida ultrapassa a esfera do privado, nem ele se revela na totalidade nem ela se compromete ou se dá a conhecer. O espaço mingua um pouco mais: na relação, na casa, no coração e nas dúvidas que diminuem o futuro, lançando dúvidas – ao leitor – sobre o que lhe retirará perspectiva e luz: se o trabalho, se ele, ou se ela mesma quando se questiona. “E percebi que, para ele, eu era puro instrumento, alguém sem vontade ou discernimento, um espaço destituído de consciência para onde ele podia escapar, a única companhia que ele suportava. Eis a razão, eis a razão pela qual pedira a minha presença, a razão de eu estar ali”.
Perante exigências, a protagonista começa a questionar a sua vontade em permanecer em determinados espaços, desde logo se as suas vontades e razões serão verdadeiras. “A ideia era tão pessoal, que quase parecia impossível, e percebi que a noção de um olhar humano tão longo e atento estava muito para lá do domínio da experiência contemporânea. (…) Significa qualquer coisa, este virar para dentro, virar costas à tempestade que se avoluma lá fora”.
É na complexidade daquilo que observa que reside a intensidade deste livro de Kitamura, recheado de introspecções, funcionando como filtro, explorando as camadas da linguagem e das máscaras a que as convenções sociais obrigam – ou até mesmo certas relações íntimas, alimentando um certo desapego. Quando uma pessoa se sente de reserva, qual será o espaço negativo da sua própria ausência? Compreender-se e aceitar-se, sentir-se realmente ela própria – talvez seja essa a maior das intimidades.
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