Um thriller psicológico. Uma relação doentia entre mãe e filha. A interrogação do Eu e da realidade. Estão unidos os ingredientes perfeitos para um livro com parágrafos que nos correm diante dos olhos.
“Instinto” (Suma de Letras, 2021), de Ashley Adrain, reúne todos os elementos essenciais para o drama familiar perfeito: a mãe que não o é, a criança manipuladora, o pai céptico, um mal que se abate sobre a casa. Uma trama que se desenrola em torno de uma mulher descendente de outras, que não nasceram para ser mães… de meninas. Se é uma questão genética ou apenas uma condição psiquiátrica proveniente da falta de amor materno, nunca saberemos. O que interessa é que Blythe, cuja história vamos conhecendo na primeira pessoa, é mãe de uma filha que renega e é alvo do mesmo desprezo por parte da criança.
Vamos afastar-nos da história e concentremo-nos, por agora, nos grandes pilares do livro. Conhecemos, pela voz de Blythe, o fardo que é sofrer a pressão social para e de se ser mãe, o que acarreta enormes responsabilidades e muitas interrogações ainda antes da criança nascer. Sou mulher, tenho de ser mãe? O meu marido quer um filho, tenho de agradar? Que tipo de mãe serei? Serei capaz de cumprir? As expectativas sociais sobre a maternidade, desde a gravidez à educação de uma criança, são expressas pela protagonista com tom melancólico, sofrido e autêntico. E de que forma a chegada de uma criança afecta o lar e a dinâmica familiar? É possível que a criança seja responsável pelo declínio de um casamento, ou é a mágoa da mãe arrependida que mina as relações entre si e a criança, entre si e o pai? E é a criança que influencia a vida profissional da mãe ou é a mãe que se auto-sabota?
São estas questões que pairam sobre o livro e que expõem, de forma crua, as dúvidas mais íntimas de que as mulheres podem sofrer quando o instinto maternal é questionado. Mas outras questões, agora relacionadas com a narrativa, se levantam também: o que fiz eu para a minha filha ser assim? A responsabilidade dos seus actos é minha? Porque não gosto eu da criança? Porque continuo a viver assim? Perguntas que vão surgindo à medida que a filha cresce e a relação se vai deteriorando.
Transversalmente, e ao longo de todo o livro, assistimos a uma decadência gradual do estado de saúde mental de Blythe, o que é reflectido maioritariamente nos momentos em que se encontra só, como se os seus pensamentos ganhassem vida e forma. Por esse motivo, é normal que o leitor se questione: afinal, isto está mesmo a acontecer? Se ela não está bem psicologicamente, será que as histórias que nos conta são realidade ou serão apenas uma interpretação bastante distorcida da realidade?
A mãe que não o é, a criança manipuladora, o pai céptico, um mal que se abate sobre a casa. Uma trama que se desenrola em torno de uma mulher descendente de outras que não nasceram para ser mães. Lembrará isto outro livro? Se resgatarmos “Temos de falar sobre Kevin”, de Lionel Shriver, vamos encontrar o mesmo modelo: a mãe que não o é, a criança manipuladora, o pai céptico, um mal que se abate sobre a casa. Depois de ser ler esta obra monumental, que nos deixa incomodados a cada página e que revela a triste realidade que é a destruição de uma família provocada por uma criança que é sociopata, é expectável que a leitura de “Instinto” não seja assim tão prazerosa. No fundo, talvez seja difícil e quiçá injusto colocar lado a lado dois livros tão semelhantes e diferentes em simultâneo.
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