Primeiro houve “Guia para 50 Personagens da Ficção Portuguesa”, um divertimento que deu a conhecer ao leitor 50 das mais fascinantes personagens da ficção portuguesa, apresentadas em pequenos capítulos numa ordem cronológica que, mais do que seguir a data de publicação do livro ou o tempo que nele era descrito, percorria uma linha temporal feita de emoções e estados de alma.
Seguiu-se “As Primeiras Coisas”, uma imensa Enciclopédia de fatalidades – ofertada com o Prémio José Saramago -, apresentada por ordem alfabética, de pessoas que fizeram a história do Bairro Amélia: Adozinda, a mestre dos desmanchos; Adalberto, um génio que ouvia vozes a falar em russo; Dona Cremilde, que descia a escada falando com seres imaginários (como se tivesse um fantástico contrato com a morte); um dentista que arrancava dentes a sangue-frio; o Doutor Santos, que passou do ser mais respeitado do bairro a “filho da puta fascista”. Um romance composto de pequenos fragmentos – crónicas brilhantes -, habitado pela melancolia e pela violência mas onde espreitava, por detrás de um mundo de fatalidades, uma réstia de humanidade que seguia o mantra “viver é falhar“.
Agora, dedicado por inteiro ao ofício de escriba, Bruno Vieira Amaral oferece-nos “Hoje Estarás Comigo no Paraíso” (Quetzal, 2017), um romance corajoso onde, ao procurar as causas para a morte de um primo do qual guarda apenas indícios daquilo a que se podem chamar memórias, acaba por recuperar e construir a sua própria geografia, num mergulho na infância e no acto que assiste à própria escrita – as citações que antecedem cada capítulo são um belo guia de assistência ao exercício ficcional.
“Para mim, João Jorge nasceu na noite em que o mataram, nas hortas a caminho da Vila Chã“. É este o ponto de partida para a investigação de Bruno Vieira Amaral ou, como lhe chama o avô, de Dom Bruno do Vale da Amoreira que, partir de testemunhos orais de familiares e desconhecidos, recortes de imprensa e arquivos judiciais, tentará encontrar uma verdade que insufle algum sentido à vida de João Jorge e traga alguma luz a uma morte que parece estar entre o crime passional, o roubo de porcos e o puro acaso.
O triunfo do romance está, porém, afastado deste lado mais detectivesco, residindo na viagem pessoal empreendida pelo narrador que, desde os tempos em que na adolescência caminhava entre “campas e ciprestes“, reconstrói o seu próprio caderno de memórias.
Quanto ao leitor, vê-se também obrigado a abrir a gaveta dos recuerdos, enfrentando os vários silêncios familiares, relembrando os amores deixados para trás, redescobrindo o corpo, recordando a passagem da infância para a idade adulta. Ou, ainda, bebendo leite com cola-cao, relendo as Histórias do Avozinho, assistindo às novelas “O Bem-Amado” e “Kananga do Japão” ou regressando ao incrível Mundial de 1982.
Por entre referências a W. G. Sebald, Euclides da Cunha, Vargas Llosa ou Garcia Marquez, Bruno Vieira Amaral escreve a sua história e a contada pelos outros – “Escreva isto amigo Vieira” -, devolvendo a memória e o prazer de recordar aos menos desfavorecidos, democratizando a própria existência humana – e a ideia de justiça cega – ao apontar as injustiças diárias de quem nada mais almeja do que a mera sobrevivência: “Que injustiça? A injustiça das ordens gritadas, a injustiça de um homem, seu semelhante, a berrar-lhe aos ouvidos, a injustiça do sol e do suor, a injustiça de, naquela tarde e em todas as tardes, haver um mundo para além daquela vala, a injustiça do esforço diário, burro, rotineiro. Essa injustiça. A injustiça que todos calamos, diariamente, a caminho do trabalho, do café bebido no barco, no jornal gratuito abandonado no banco do comboio, no bolo de arroz mastigado e engolido à pressa, aquele bocado que dói e custa a ir para baixo e o copo de água para empurrar o tédio“.
Sem Comentários