“Tenho comigo próprio uma luta desmedida. Podendo, comia a lua“. As palavras são de Carlos Vaz Marques no lançamento do número nove da Granta portuguesa, dedicado a duas das mais nobres actividades humanas: “Comer e Beber” (Tinta da China, 2017). Um número que, para além de um punhado de contos de eleição, apresenta duas cerejas: André Carrilho é o ilustrador da capa e dos contos desta edição, passando a ser o ilustrador residente no que toca às capas da Granta. A outra cereja, infelizmente ainda sem lugar cativo, é a troca do habitual ensaio fotográfico por uma banda desenhada que, só por si, valeria comprar este número.
“Azeitona Verde”, de Tatiana Salem Levy, é uma pequena sátira ao natural e ao biológico em tempos de dor, numa viagem cómica e melancólica ao parto e aos por vezes complicados tempos da amamentação (ou da falta dela); Richard Zimmler fala da comida enquanto memória espinhosa, servindo ao leitor um salmão que mais se assemelha a “um rolo de papel de cozinha encharcado de água e depois esfregado com uma cabeça de alho esmagada“; a partir de duas avós de cidade, muito diferentes entre si, Alexandra Prado Coelho regressa aos cheiros e sabores da sua infância, entre uma Lisboa bem servida de pastelarias finas, croissants e do Apolo 70 e o tempo passado em São Martinho do Porto, com idas à praia onde não faltava a bola de Berlim – dois lugares que serviram para descobrir em si dois mundos: “o Verão era dos cowboys, o Inverno dos intelectuais“; “Cada prato conta uma história“, escreve Giles Foden em “O Banquete do Idi”, onde o leitor se senta à mesa para lhe ser empratada toda uma ditadura; uma caixa de rebuçados aberta numa reunião de antigos alunos do liceu faz cair uma máscara revelando um negrume escondido durante décadas nas profundezas de uma alma; Luís Afonso mostra-nos a cozinha de autor, onde um chef que se irá revelar mais irascível que Gordon Ramsay vai servindo partos como Lascas de imperador marinado com molho de citrinos, Sinfonia de folhas frescas da horta ou um Consommé de perdiz com ravioli de fois gras, tudo regado com pomadas como um Sauvignon Blanc du Loire 2014 ou um Vin jaune du Jura 2008; Ricardo J. Rodrigues transporta-nos a uma Lisboa que então era alimentada por aldeias que lhe serviam a melhor carne, ovos e legumes, falando de uma bisavó para quem a felicidade se resumia a uma matança do porco (mas só a partir do momento em que os guinchos paravam); David Mitchell traz-nos um Japão a várias vozes, todas a ressoar dentro do Mister Donut, numa atmosfera Taratiniana que aborda a condição da mulher, os estilhaços da guerra ou a vontade de se ser escritor.
Destaque especial para a banda desenhada “Sleepwalk”, com guião de Filipe Melo, arte de Juan Cavia e legendas de Pedro Serpa, uma história tocante e muito humana onde os sabores se transformam em memórias de tempos felizes mas irrecuperáveis – e que ainda partilha a receita de uma tarte de maçã que anda a saltar de geração em geração. Menos fotografia e mais BD, apetece dizer.
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