Lançada no mês de Julho de 2022, a Granta em Língua Portuguesa 9 escolheu como tema a “Rússia” (Tinta da China, 2022). Um tema que, de acordo com o director Pedro Mexia, havia sido decidido muito antes do início guerra na Ucrânia, num certo paralelismo espiritual com os textos de Batalha Reis, amigo de Eça de Queirós: “Russos e ocidentais não conhecem a história uns dos outros”. Quanto a Gustavo Pacheco, o director do lado de lá do Atlântico, a opção de se ter mantido o plano original da publicação vai ao encontro da ideia de Arte: “É esse legado, que resistiu e resistirá a tantas guerras e a tantos líderes autoritários, que dá sentido a esta edição”. Edição que, para já, é uma das mais sumarentas desde o lançamento da Granta em Língua Portuguesa.
Em “A História da Rússia”, André Sant`Ana organiza uma muito original viagem, conduzida pelo jovem George Harrison, onde se trincam uns “croc-chips-bits-burgers” e se descreve Estaline como aparentado a Bolsonaro – mas com “cílios postiços de Cinderela”. Fala-se da divisão entre bons e maus da fita, enquanto se assiste a um qualquer programa numa televisão a preto e branco.
“O Enterro das Ossadas”, de Orlando Figes, conta-nos uma Odisseia em torno das ossadas de Nicolau II, o último dos czares, balançando – ou dando a escolher – entre o imperativo da verdade e a reconciliação nacional, a igreja ortodoxa e o comunismo.
Mas há muito mais nesta viagem entre o passado e o presente: à volta do conceito do fim da história de Fukuyama, observamos o quadro “mais famoso, mais enigmático, mais assustador do mundo – o Quadrado Preto”, de Malevich – “O Quadrado, de Tatiana Tolstya”; assistimos, por entre matrioskas e garrafas de vinho, ao fim de uma guerra – “Boneca Russa”, de Camila Chaves; sentimos o pulsar do coração do consumismo, através da capacidade humana de adaptação de um camponês descontente com a revolução que se torna um liberal – “A Fila”, de Amor Towles; pegando nas palavras de Hannah Arendt, sondamos o chocante e inaudito ser, vendo como a solidão se sobrepôs tanto à vida privada como à vida em comum – “O Século de Nadejna Mandelstam”, de Ana Matoso; com as “pernas especialmente provocantes, obscenamente nuas” de uma professora de alemão, experimentamos uma paixão inalcançável e a felicidade mínima – “A Pobre, Feliz Kolivânova”, de Ludmila Ulitskaya; lemos uma biografia não oficial (e algo tresloucada) de Laika, a cadela espacial soviética – “Rezarei Bastante Para Que Ela Volte Viva”, de Reginaldo Pujol Filho; a incrível história de duas avós em colisão – e depois amasso – com a polícia secreta, mas que ainda assim se juntam num brinde comum: “«Que todos eles se finem.» Eles – Estaline e todos os seus perversos camaradas”. A pergunta aqui lançada é esta: “Onde começa e acaba um crime?”. E, depois disso, quem é que pode ser responsabilizado? – “A Minha Avó, a Censora”, de Masha Gessen; aprendemos quase tudo sobre “a conexão entre uma estepe em chamas, uma bela mulher, o seu segredo doloroso e o mistério de uma cidade esplendorosa”, ao encontro do mistério que reside no íntimo de uma mulher russa – “Incêndio na Estepe”, de Pepetela; José Pacheco Pereira abre o livro – e o diário – e, entre textos publicados e inéditos, dá-nos um olhar sobre a Rússia que vai de 1998 a 2024 – “Diário Russo, Azeri, Georgiano e Ucraniano”; uma mulher verá o seu lema de vida posto à prova – “Renúncia”, de Clara Drummond; descobrimos venenos, heranças e segredos no leito de morte, perguntando-nos afinal quem matou Tolstói – “Aleksandr Púchkin, Um Poeta Célebre e Desconhecido”, de António Pescada; tiramos um retrato, de um ângulo inesperado, a Anna Karenina – “A Posse”, de Hélia Correia; e terminamos em Omsk, lugar onde Dostoiévski escreveu “A Casa dos Mortos” e viveu “uma reconciliação quase mística com o seu próprio povo russo”. É neste texto – “Sibéria”, de Colin Thubron – que descobrimos um olhar certeiro sobre o colapso do comunismo através da queda de um homem: “Imagino-o vítima daquela auto-hipnose que sustentou a grande ilusão do próprio comunismo – em que as ideias e os sonhos pairam ilusoriamente sobre a terra devastada dos factos”.
Com a habitual direcção de imagem de Daniel Blaufuks, este volume tem ainda ensaios fotográficos de Mauro Restiffe e Mariana Viegas. O volume 10 da Granta em Língua Portuguesa tem como tema “O Outro”, e está já disponível nas livrarias.
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