No lançamento do sétimo número da Granta em Língua Portuguesa 7 (Tinta da China, 2021), uma edição que gravita na ténue fronteira entre Sono/Sonho, Pedro Mexia chega-se à frente com Freud e coloca o sono em pé de igualdade – ou talvez uns furos acima – do sonho. Já Gustavo Pacheco, parceiro de crime literário a operar do outro lado do Atlântico, destaca o vínculo profundo entre os sonhos e a ficção. Uma visão dupla que se vê colocada em evidência nos contos deste sétimo número, que conta com direcção de imagem de Daniel Blaufuks e ensaios fotográficos de Cláudia Andujar e Jorge Molder.
Com um discutível sentido estético, muito formol e uma piscina de cadáveres sem tempo de treinar para os Olímpicos, Rodolfo Fogwill faz dos sonhos matéria literária e de introspecção; Sérgio Rodrigues dá numa de matrioska russa e mostra-nos “a arquitectura secreta de sonhos embutidos em sonhos”, recuando aos anos 1960 e aos tempos do conscious dreaming; Cláudia R. Sampaio leva-nos ao lugar onde se combate a solidão, falando do sonho como uma imitação da existência mas que traz “algumas regalias e menos assombrações”; John Giorno puxa dos galões e cumpre, não sem algum ressentimento, mais do que os 15 minutos de fama prometidos por Warhol, num conto encravado entre os “expressionistas abstractos da velha guarda” e a pop art; na companhia de Buñuel, Lacon, Freud, Shakespeare, Annie Baker ou Louis Malle, Francisco Frazão revela que “nem sempre é fácil dormir no teatro”; numa revisitação pouco cor-de-rosa da maternidade, Catarina Gomes recorda a privação de sono pós-natal e mostra a possibilidade do amor como distância; Catherine Lacey lembra que, se a porta estiver aberta, haverá sempre uma igreja e um banco para nos sentarmos; luto, memória e o sentimento de perda são o alimento de Justine Picardie para uma sessão espírita com vozes electrónicas; A.L. Kennedy não nos deixa dormir e, nessa privação do sono, leva-nos com ele numa homenagem a toda a Literatura; Ondjaki faz-se ao mar numa canoa vertical e, entre versos, lança uma interrogação pertinente: “quantos mais dias de espera vamos dar à fome?”; Anna Della Subin mergulha no Alcorão para nos contar a lenda de sete homens que voltaram de um sono cadavérico de 309 anos – isto segundo Deus, uma vez que o “académico pedante” Edward Gibbon não dá mais do que 187. A interrogação, essa, permanece: será que vamos todos ressuscitar um dia?; Daniela Abade lança-se numa intervenção, “sem plano, sem nada”, num país governado há largos anos pelo demónio; Jules Montague paralisa-nos o sono e obriga-nos a ouvir o bater do “coração escuro do sono REM”; Afonso Reis Cabral apresenta-nos ao Montanha, um tipo que “nunca saíra de um raio de dez quilómetros, nunca casara, nunca tivera mulheres”, mas que acabou por morrer de… sífilis; Jon Fosse apresenta-nos o amor como uma avalanche, feita de “desmoronamentos lentos, seguidos de outros, repentinos, fulminantes, como rajadas de vento inesperadas”.
Destaque especial, nesta edição, para quatro contos: “Passageira”, de Giovana Madalosso, lugar de morte e de perda, ideal para “um convescote de abutres”, onde se entra num quarto para o qual se olha, de olhar renovado, como “um sudário de mil camadas”. Um conto alimentado por sonhos lúcidos, uma lucidez onírica e despedidas póstumas; “De onde eles vêm”, de Jeferson Tenório, onde Prout e Joyce dançam ao som dos Racionais MC`s e a literatura se torna alimento contra a solidão, mostrando que o caminho difícil é, por vezes, o que deve ser percorrido; “Os sonhos da razão”, de Ruth Franklin, que entre teorias várias sobre os pesadelos, a entrada em cena da psicanálise e um paralelismo com a literatura, mergulha no “estranhamento do que é familiar”; “Charlie Parker plays Bossa Nova”, mais um passe de mágica de Haruki Murakami, desta vez a partir de uma crítica musical fictícia gravada em disco imaginário (ou não?) – e que faz parte de “Primeira pessoa do singular”, editado recentemente com o selo da Dom Quixote.
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