“Como todos os uruguaios, eu quis ser jogador de futebol. E jogava muito bem, era uma maravilha, mas só à noite, enquanto dormia; durante o dia era o pior perna de pau que se tinha visto nos campos do meu país.”
As palavras pertencem a Eduardo Galeano, um dos mais apaixonados activistas e escritores latino-americanos que, como muito boa gente, é um maluquinho da bola – ou, como o próprio diz no lançamento de “Futebol ao Sol e à Sombra” (Antígona, 2019), apenas “um mendigo do bom futebol”, mas só depois de ter posto em segundo plano o seu fanatismo pelo Nacional.
Nestes dias em que até o futebol deixou de existir, nada melhor do que entrar nesta viagem apaixonada por aquele que é conhecido como o desporto rei. Um desporto que, segundo Galeano, tem feito “uma viagem triste do prazer ao dever (…), a partir do momento em que se transformou numa indústria”, onde a velocidade pura e a força acabaram por engolir muita da fantasia e ousadia iniciais.
Ainda assim haverá sempre lugar para o milagre, como atestam estes textos curtos e deliciosamente poéticos, onde se fala do guarda-redes, um tipo que “podia muito bem ser mártir, bombo da festa, penitente ou palhaço das bofetadas”; o fanático, qualquer coisa como “o adepto no manicómio”; o golo, “o orgasmo do futebol”; o árbitro, “o tirano abominável que exerce a sua ditadura sem oposição possível e o verdugo enfatuado que executa o seu poder absoluto com gestos operáticos” – algo que nem o VAR conseguiu mudar; ou, claro, a bola, tratada pelos brasileiros por termos como “gorduchinha, menina” ou nomes tão fofinhos quanto“Maricota, Leonor ou Margarida”.
Para além das personagens principais e básicas para que o jogo aconteça, fala-se das origens da bola, das regras do jogo, da rivalidade Fla/Flu, de muitos episódios do futebol uruguaio, de Albert Camus, de diversos mundiais de futebol, de talismãs e esconjuros, do amor à camisola, de quem são os donos da bola ou do poder da televisão – joga-se para ela na verdade.
Quanto a jogadores, entre notas biográficas e o relato entusiamado de golos famosos, referências a craques como Di Stéfano, Garrincha, Puskás, Charlton, Yashin, Eusébio, Beckenbauer, Pelé, Maradona, Cruyff, Muller, Zico, Gullit, Romário ou Baggio.
Um percurso cronológico que chega até ao Mundial de 2014, para ser lido como uma mistura de enciclopédia emocional e uma masterclass literária sobre o desporto dos desportos.
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