O título já era, por si só, um mimo: Quem vê capas não vê corações. Foi este o nome escolhido para a conversa sobre a ilustração, o design e outras vicissitudes ligadas às capas dos livros que decorreu na Casa Abysmo, que continua a integrar o Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos com uma programação desenhada a régua e esquadro. Por baixo das cativantes ilustrações de André Letria, sentaram-se Jorge – o boss – Silva, André Carrilho, Mantraste e Luísa Pires Barreto, para discutir aquele que é, segundo Jorge Silva, “um dos maiores pesadelos das rotinas do design de comunicação, um fenómeno fantástico e assustador”.
No arranque, ao estilo de um cocktail, mostrou-se a capa desenhada por Pedro Proença para “Venenos de Deus e Remédios do Diabo”, livro de Mia Couto com edição da Caminho. Segundo reza a história, Proença e Mia não morriam propriamente de amores um pelo outro, e o primeiro até fazia gala de dizer que nunca lia os livros para os quais era convidado a desenhar as capas. Mostram-se depois 4 capas diferentes do clássido “Crime e Castigo”, desenhadas por alguns cromos – uns mais do que outros – da ilustração: Manuel Ribeiro de Pavia, António Cruz Caldas, Luís Filipe de Abreu e Baganha. Uma introdução que serve para o lançamento da primeira pergunta: a ilustração tem mesmo de ilustrar o texto ou, adoptando uma atitude Proença, não querer saber do que está lá dentro?
Para Carrilho, “ilustrar é sempre uma interpretação”, avançando com uma regra que tem usado nas não muitas vezes em que desenhou capas de livros: não representar a personagem principal para não condicionar a leitura. Lembrando “A Metamorfose”, disse haver uma carta de Kafka escrita ao editor, em que pedia para que o animal do livro não fosse representado na capa. “Para mim até se trata de uma metamorfose familiar, sobretudo da irmã do personagem principal”. Recusou, porém, a atitude Proença na abordagem às capas. “Não faz sentido, para mim, não ler o texto. Tento optar por uma ilustração conceptual e uma abordagem lateral do texto, mas o meu trabalho irá sempre condicionar a forma como o leitor lê o livro”.
Luísa Pires Barreto veste a pele de uma marketeer e aponta aos escaparates. “A capa tem sempre de ser um teaser para o que está lá dentro. Nao pode ser disassociada do texto”. Já Mantraste, que se autu-intitulou de “um DJ de ideias, que as agarra e as transforma numa espécie de Frankenstein”, socorreu-se da parábola do dióxido de carbono. “Fazer uma capa de um livro é como dar um arroto, e eu nem sei arrotar. Tem de ser dado a quem vai desenhar a capa um cheirinho, uma pista do que se quer”. Seja como for, nisto de desenhar capas corre-se sempre o risco de dois sortilégios: desenhar uma boa capa para um mau livro ou uma má capa para um bom livro. “O primeiro caso é o pior. Estamos a ser chamados para vender coisas. Às vezes pergunto-me se não deveria ser como o Ikea, tudo capas brancas e lettering a preto. A ilustração é uma ferramenta do mercado”.
Em destaque esteve também o tema da identidade das editoras, e se a abordagem às capas deverá ter isso em conta.”Quando estava na Elsinore, às vezes sentia-me tão inseguro que chegava a fazer duas capas diferentes. O editor queria mas a Fnac não. Se calhar não devia falar destas coisas”, brinca Mantraste, falando também sobre a sensação que era ter de fazer a capa com a ideia de que teria de deixar espaço para referências como bestseller do New York Times ou por aí: “Quando a capa saía sentia que o meu filho tinha ido para a droga”.
O elogio maior, partilhado por todos, foi para o caso raro das capas de Vera Tavares para a Tinta da China, onde parece haver uma simbiose perfeita entre a identidade da editora e a sensibilidade artística da ilustradora – e que as tornam reconhecíveis em quaisquer estante ou escaparate de livraria. “Eu teria medo de fazer uma capa para a Tinta da China”, brinca Carrilho, enquanto Mantraste partilhou que Vera Tavares é também uma boa leitora: “A Vera diz ler sempre os livros antes de fazer a capa”.
Falou-se ainda da relação entre o design e a tipografia, do jogo da tipografia com a ilustração, do sentido mais comercial das grande editoras e cadeias de supermercados e, numa homenagem a João Paulo Cotrim – “um curador de pessoas”, chamou-lhe Mantraste -, exaltou-se o ecletismo gráfico da Abysmo, que chegou mesmo a editar um livro sem capa, que alguém numa feira do livro deitou fora julgando tratar-se de um defeito de impressão. Livro que, segundo José Anjos, esconde nos últimos versos uma capa adaptada a cada leitor: “haverá ainda/ haverá pouco/ quem encontre nos escombros de um livro/ o seu rosto nas mãos de outro”. Grande Paulo José Miranda, designer de poemas.
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Fotos: Luísa Velez
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