Incerto sobre se teria espaço num país onde, na geografia literária, parece haver apenas duas cidades no mapa, Itamar Vieira Junior decidiu tentar a sorte em Portugal, acabando por levar para casa o Prémio Leya com “Torto Arado”, romance sobre o universo rural brasileiro povoado por mulheres. Quanto a Isabel Lucas, depois de ter cumprido o sonho americano, voltou a cruzar o Atlântico para uma “Viagem ao País do Futuro”, guiando-nos como uma experiente e aventurosa guia literária pelo coração, alma e pulmões da literatura brasileira. No FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, numa sessão moderada por João Gabriel de Lima, falou-se de um país desigual, imenso e, de certa forma, inventado.
“Fizeram um trabalho extraordinário de descolonização da língua, que foi transformador na minha maneira de pensar”. No tempo que passou no Brasil, Isabel Lucas ficou fascinada pelo seu lado mestiço – “no sentido positivo do termo” -, revelador de uma diversidade que vai da cor de pele à maneira de falar, das formas de estar aos modos de escrever. Um fascínio que não encontrou paralelo na violência de rua ou na apropriação territorial, “uma herança de séculos que se mantém ainda hoje”. Para Isabel, que tem com a literatura e o continente americano uma relação de grande proximidade, “o sonho americano tem quase a mesma ambivalência com este país do futuro, estranhamente adiado”.
Itamar falou do seu fascínio e profunda atracção pela história do Brasil. Não tanto enquanto país mas, antes, como uma história própria, ancestral e construída por vários antepassados. Uma história “épica, violenta, mas encharcada de humanidade”.
Sobre a escolha das obras que serviram para esta viagem-descoberta em doze capítulos, feita a Isabel Lucas a convite de uma editora brasileira – a Cepe Editora -, estavam desde logo identificados os autores e os livros de partida – “Os Sertões”, de Euclides da Cunha – e chegada – “Grande Sertão: Vereda”, de João Guimarães Rosa. Obras que, nas palavras do moderador, serão talvez “os dois livros mais difíceis de ler do Brasil e tão enigmáticos quanto ele”. O critério foi o de, para além de terem sido lidos, serem capazes de provocar alguma ressonância também nos autores portugueses, razão talvez para ter sido, de acordo com Isabel Lucas, uma “escolha conservadora”, mas que contemplou geografias, épocas e estilos bem distintos que a colocaram “em diálogo com o brasil actual”. A ficção, essa, foi sempre o ponto de partida para o real, começando pelo “livro fundador, o mais difícil de perceber antes de ter ido ao território”, e terminando com “um livro simbólico, que parece conter todas as possibilidades para um outro Brasil”.
A ideia para a escrita de “Torto Arado” teve raízes bem longínquas no tempo, de quando Itamar lia histórias sem ter ainda o “repertório” para as explorar através da escrita. Algo que se tornou possível depois de ter ido trabalhar para o campo, verificando que as estruturas esclavagistas estavam ainda bem presentes na sociedade brasileira. “O que me levou a escrever esta história foi o contacto com estas personagens, que nasceram na minha mente a partir da apreensão da realidade. Permitiu dar verosimilhança às situações do romance”. Itamar recordou o momento em que leu “Vidas Secas”, um influente e importante romance do escritor brasileiro Graciliano Ramos, escrito entre 1937 e 1938, sentindo-se chocado como, oitenta anos depois, ainda ecoava a brutalidade nas relações do trabalho no campo. Um choque que o moveu para a escrita: “A literatura parte dos nossos incómodos com o mundo”.
Fundamental para compreender o Brasil é a sua religiosidade. “Aquilo que vemos na literatura existe de facto”, afirmou Isabel Lucas, tendo encontrado expressão visual e actual nos livros de Jorge Amado, lidos há muito tempo. “É como se a religião fosse uma mestiçagem de todas as religiões que existem no Brasil”. Ainda sobre Jorge Amado, Isabel falou na dificuldade de escolher uma obra sua para o livro, uma vez que cada pessoa tinha em si um livro diferente. A escolha acabou por recair em “Tenda dos Milagres”, romance publicado em 1969, retrato da mestiçagem de que Isabel fala e “dessa possibilidade de uma coexistência democrática”.
Itamar considera semelhante a relação que os portugueses e os brasileiros têm relativamente à religiosidade, “para o bem e para o mal”, recordando o momento da publicação em Portugal de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago. “Não sou religioso mas precisava de conhecer o universo para poder falar sobre ele. Para chegar no mais profundo das personagens. Para ter essa visão cosmogónica precisava de dominar isso. Se para mim algo pode ser inconcebível, para outras pessoas é algo que faz parte do seu quotidiano”. Relativamente à mestiçagem, palavra que dominou grande parte da conversa, Itamar situou-a num denominador comum ao de Isabel: o da utopia.
Uma das grandes surpresas para Isabel Lucas terá acontecido na viagem ao interior do Brasil mais remoto, que lhe trouxe ecos de Portugal. “Quando fui para o Sertão encontrei um modo de estar e um vocabulário que consegui reconhecer dos meus avós. A forma de contar histórias, as expressões que as pessoas da cidade já perderam. Um olhar perdido no horizonte. Foi estranhamente familiar, como se pudesse pertencer ali, como se aquelas pessoas tivessem pertencido à minha vida passada. Algo do sul da Europa está ali guardado, há ali um reduto”.
Geógrafo de formação, Itamar acabou por enveredar pelo campo da Antropologia “em busca da minha própria história e raízes”. Num lugar onde as estruturas permaneceram desde o período pós-abolição, o escritor brasileiro fala do país como “uma invenção”, um lugar em permanente construção e com uma identidade inacabada, provavelmente condenado a permanecer assim. “Não só pela colonização, hoje em dia os colonizadores são outros”. Isabel considera que a ligação ao território dos brasileiros é bem diferente daquela que experienciou na sua viagem pelo continente americano. Uma herança colonial onde “cada um cuida do seu espaço, do seu saque. Os brasileiros continuam a achar que alguns têm mais direito à riqueza do que outros. Nunca encontrei ricos tão ricos e pobres tão pobres. A maior parte dos brasileiros não olha para o Brasil com o amor que ele merece. É uma joia do mundo”.
A fechar e em modo de recomendações literárias, Isabel Lucas destacou “Grande Sertão: Veredas”, Sérgio Sant’Anna – “pela emoção” – e “Dois Irmãos”, de Milton Hatoum. Quanto a Itamar, revelou gostar muito de Jorge Amado, escritor capaz de produzir “uma literatura directa com grandes personagens”, e também de Érico Veríssimo, “um autor que me deu norte”.
Fotos: FOLIO
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FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos 2021
15 Outubro 2021
Mesa 2
Um país de múltiplas identidades
Isabel Lucas conversa com Itamar Vieira Junior
Moderação: João Gabriel de Lima
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