Numa edição do FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos dedicada ao Outro, Tatiana Salem Levy e Giovana Madalosso sentaram-se, na companhia da jornalista Sara de Melo Rocha, para falar sobre luta de classes, numa conversa sobre a condição feminina no Brasil que foi da perpetuação do exército branco e invisível das babás à violência extrema contra a mulher. Um protagonismo dado ao feminino e ao outro que se vê partilhado, ainda que de formas bem distintas, por ambas as escritoras nos seus mais recentes romances: “Suíte Tóquio” (Tinta da China, 2021), de Giovana Madalosso, e “Vista Chinesa” (Elsinore, 2021), de Tatiana Salem Levy.
Desafiada a revisitar o seu percurso literário, Tatiana disse “tentar sempre resgatar uma Tatiana original”, que não esquece a origem da perguntas que a levou ao mundo da escrita. Perguntas que procuram o diálogo com a linguagem, os livros e o mundo naquilo que é essencial, procurando “manter o fulgor do primeiro romance, que tem a ver com a juventude, com o não ter medo. Apesar de não ter a experiência de escrita que os outros vão ter”. O afastamento e a reclusão naturais à vida de escriba parecem-lhe, cada vez mais, uma miragem: “O mundo literário foi afogado pelas redes sociais, pela exposição, que é o oposto daquilo que nos leva a escrever. Procuro fechar-me num mundo imaginário”.
Giovana disse sentir-se, na literatura, cada vez mais na sua própria pele, tentando aproximar-se um pouco de alguma respostas que a inquietam. Sobre “Suíte Tóquio”, refere que “a sociedade brasileira assenta muito no trabalho das babás. São elas o exército branco e invisível do livro, que assenta num sistema frágil de trabalho que se vai perpetuando”. Recusa, porém, o rótulo de escritora feminista: “Sou uma feminista raivosa, mas a minha literatura não. Não gosto de trazer algo panfletário para dentro dos meus livros, apesar de procurar algum embaralhamento das perspectivas de género”.
“A condição do feminino, a violência no Rio de Janeiro. Uma escrita física que causa dor a quem lê”. Uma descrição de Tatiana sobre “Vista Chinesa”, que partilha com “O Paraíso”, o seu terceiro romance, um olhar sobre a violência contra a mulher. “Vista Chinesa” partiu da história da violação de uma amiga, fortemente agredida num lugar do Rio a que chamam Vista Chinesa, e que foi o culminar do desencanto perante um país que, após uma ilusão chamada Jogos Olímpicos, ainda está por acontecer: “Parecia que o país do futuro ia acontecer. Foi ver que aquela promessa ainda era uma promessa, que não tinha condições para se realizar. Acabei por transformar a história num romance em 2018, depois de um processo real de entrevistas. Ela sempre soube que seria um romance, que não seria a história dela. Foi uma forma de mostrar como a literatura pode narrar uma historia inenarrável, reduzir o abismo entre o que ela viveu e a forma como nós o ouvimos. A literatura serviu assim para nos aproximar daquela dor. Vida e dor caminhando juntas”. Um livro que acabou, também, por se ligar à própria experiência pessoal de Tatiana, que integrou as suas vivências e as perguntas para as quais não obteve resposta da mãe no romance, num livro que é uma espécie de carta de uma mãe aos filhos do futuro.
O processo de construção das duas personagens centrais de “Suíte Tóquio”, tão diferentes no tom e no vocabulário foi, para Giovana, “um processo muito desafiador, tentando deixar as duas em pé de igualdade. De forma a que o leitor abrisse o livro ao calhas e soubesse logo quem estava a falar. Tinha uma parede de cortiça onde criei um vocabulário para cada uma delas. Fazer amor versus trepar ou transar. Até no humor teria de haver essa separação”.
Para Tatiana, a sociedade encontra-se assente na culpabilização da vítima, por um olhar alheio que acaba por se estender à própria experiência. “A sociedade inverte o papel. E a própria vítima acaba por o fazer. Acaba por haver sempre mais um porquê”. No seu livro fala do paralelismo entre dois corpos destruídos, “um tentando se refazer, outro afundando-se cada vez mais, que acabam por se misturar de forma inconsciente”.
À sugestão de Joana Gorjão Henriques de que o sequestro em “Suíte Tóquio” sirva como um ajuste de contas, Giovana responde com uma negativa. “Acho que não. Tento não julgar os personagens. Já somos julgados o tempo inteiro no inferno das redes sociais. Interessa-me, sobretudo, o lado vulnerável dos personagens. Não queria ter bandidos e mocinhas nessa história”. Um lado vulnerável que surge com o assumir da maternidade. “Depois de parir é preciso adoptar o filho. Algumas mulheres demoram mais tempo e outras não conseguem nunca fazê-lo”. O que há, segundo Giovana, é uma crítica social com o foco na questão de classe, sem procurar a vitimização ou a culpa. “Escrevi este livro porque também tive uma babá que me permitiu fazê-lo”.
“Vista Chinesa”, o livro no qual se sente mais o Rio, foi escrito do lado oposto do Atlântico. “Escrevi todo este livro em Portugal e acabou por ser o meu livro mais carioca”. Num olhar sobre a educação brasileira que fez ponte com “Suíte Tóquio”, realçou “o facto de no Brasil as crianças irem apenas quatro horas para a escola. Para mim, essa uma questão desse Brasil que vai ladeira abaixo, de um país que ainda e escravocrata. Essas quedas vão acontecer toda a vez se as questões de base não forem resolvidas. É um ciclo vicioso”. Um percurso descendente que Giovana liga aos cartazes invocando fome, segurados em muitos semáforos pelos quais passa no seu percurso diário, e que se vão tentando esquecer depois do choque inicial: “Não estamos falhando apenas como Brasil, estamos falhando também como humanidade”.
E como poderá aumentar o protagonismo feminino? – pergunta alguém do público. Talvez, para além da melhor aplicação da lei, de um maior peso nos média ou do aumento de narrativas literárias na primeira pessoa – ou como testemunho indirecto -, a solução possa passar também pela linguagem directa, como não aceitar que a teta, essa borracha que alimenta, se transforme em seio.
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