Será que os críticos ajudam a ler? Foi esta a pergunta lançada no Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos por Carlos Vaz Marques. Pergunta feita a dois ilustres convidados, ambos chegados do outro lado do Atlântico, cada um deles mentor de um projecto literário em forma de revista de se lhe(s) tirar o chapéu: John Freeman, americano, escritor, editor e crítico literário, dirigiu durante vários anos a prestigiada revista Granta, e lançou em 2015 a revista literária Freeman’s, que conta já com várias edições internacionais; Paulo Werneck, jornalista e editor, curador da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2014 a 2016, fundador da Quatro cinco um – a temperatura à qual o papel arde, como tão bem o celebrizou na literatura Ray Bradbury -, revista literária nascida em São Paulo em Maio de 2017.
Porém, antes dessa pergunta que deu nome a esta mesa do Folio Autores, fizeram-se outras como esta: pode o medo influenciar a literatura? Werneck, que se diz não um crítico mas um editor, referiu que certas obras importantes da literatura foram escritas sob o medo – ou são dele representações -, dizendo que os momentos de crise são propícios à criação de espaços de reflexão e divulgação, entre os quais está a criação de novas revistas ou o aumento da relevância das já existentes. Falando de uma “tentativa de censura no Brasil” que se estende a todas as áreas da sociedade, disse ser necessário “proteger os valores republicanos perante o espírito evangélico” e ter ganho o selo de esquerdista com direito a diploma. Evidências como a última edição da Quatro cinco um, onde qual momento Vanity Fair Fernanda Montenegro aceitou pousar como uma bruxa com uma fogueira de livros a seus pés, têm ajudado a cimentar esse estatuto. Para Werneck, publicações como a sua, a de Freeman e a Granta têm mesmo de ser independentes, apelando à sua subscrição – sobretudo à da Granta Portuguesa.
Sobre o acto de se continuar a editar em papel, Freeman falou do uso da linguagem como um acto de resistência: “A força da resistência não começa no corpo, começa na linguagem“, disse, falando da forma como Salazar usou a linguagem e apontando Trump como “um génio da desinformação“, que martela a linguagem e a verdade com o intuito de ser o seu portador único. “Em muitos casos os ditadores tornam-se os escritores. Os homens fortes governam manipulando o medo. Os escritores combatem isso“.
Para Freeman, “os americanos não tem História. Foi substituída por uma série de fantasias sobre o passado. Os escritores devem investigá-las e substituí-las por histórias que estejam mais perto da verdade, levantando questões importantes como: será o racismo uma projecção de culpa?“. A última edição é dedicada por inteiro à California, “lugar onde metade dos emigrantes vivem” e que terá, muito provavelmente, levantado o maior número de processos contra o presidente. Um lugar que, para Freeman, “está em fogo todos os dias do ano“, representando quem sabe “a linha de batalha do que poderá ser a mudança“. “Romper as hierarquias e a ideia de que os escritores são mais importantes na América” é outra das missões da Freeman’s.
Caberá à literatura o papel de proporcionar, também, um lugar de desconforto para o leitor? “Não há livros bons que não provoquem desconforto“, afirma Werneck, tratando de elogiar a escritora argentina Mariana Enríquez, mestre em trazer para o papel – e para contos esculpidos com esmero – temas como a ganância ou o desejo. “Os melhores escritores quebram o sentido da realidade“.
Falando da “militância da literatura negra“, Werneck defende que acima de tudo um livro não deverá ser previsível, e que o foco da publicação deverá ter isso em conta e não seguir obrigatoriamente uma qualquer agenda política ou movimento popular. Um pouco à semelhança, exemplificou, desse cavalo de Tróia que “Fala com Ela” de Pedro Almodóvar. “No Brasil existe um desejo de cancelamento dos outros. Na Quatro cinco um tem até conservador“.
Carlos Vaz Marques aponta uma modernidade escrutinadora, onde se fazem viagens ao passado para pôr de lado clássicos como “As Aventuras de Huckleberry Finn”, pelo facto de nele se usar a palavra “nigger” com desprendimento.
“Atravessámos dois milénios de misoginia. Não fui desafiado a ser outro porque toda a gente era muito parecida comigo“, refere Freeman, defendendo que “não devemos passar o tempo a matar os clássicos, porque fizeram os géneros sobre os quais as pessoas escrevem agora. Podem e devem haver acrescentos. Twain não é um racista, Junot não é um machista. Se lermos os romances vitorianos começaremos a poder ler algumas mulheres“. Saudou também o facto de escritoras como Dulce Maria Cardoso, Carole Saavedra ou Clarice Lispector entrarem no programa das escolas americanas, nas quais deveria ser também oferecida uma visão estereoscópica da escravatura, que integraria nomes como os de Colson Whitehead, Tony Morrison ou Dulce Maria Cardoso.
“São expressões do tempo“, diz Werneck, que refere que “Roth virou o machista que não pode ganhar o Nobel“, isto numa sociedade onde se dá “a extrapolação dos algoritmos para a realidade, onde apenas vemos o que gostamos. Há pouca tolerância para o que é desconfortável“. Knut Hamsun, refere, correspondeu-se com Goebbels e escreveu o obituário de Hitler. Mas também deixou esse monólito chamado “Fome”, “um livro brilhante” segundo Werneck. Sobre a pergunta que dava nome à mesa, Werneck disse ser “mais importante ensinar como não ler“. Sobretudo em revistas como a sua, que “não são do mainstream, não são o discurso dominante“.
Para Freeman, “um dos grandes problemas de hoje em dia é o excesso de informação. A leitura é uma preocupação não dominante“. Com a violência na televisão a ser servida em imagens já aceites como normalidade, é na literatura que esta poderá representar o desconforto e a inquietação : “Como criador de uma revista, estou a propor aos leitores não só que leiam mas que imaginem. Também acredito na crítica como uma forma de mostrar que algo não está visível existe. Ler é um acto privado, daí gerar depois clubes de leitura“.
Sobre esse aspecto unificador, Werneck ressalva que “a revista gera comunidades. A leitura não é tão solitária como a imaginamos, a escrita sim. As revistas são caixas de ressonância. E também uma forma de sabermos do que tratam os livros sem os lermos“, brinca, referindo que há mesmo um livro que ensina isso, e que também ele e mais de meio mundo vão falando da Bíblia sem a terem lido de uma ponta à outra. “A livraria perdeu o papel de ponto de encontro das novidades e conversas sobre a actualidade“. E, mesmo sabendo que as livrarias estão em crise, “o tipo que faz os livros é disfuncional, ele continua a publicar mesmo que não venda“.
Com este cenário de crise, será que os pequenos nichos e editoras irão sobreviver? “Sim, sendo tão loucas irão“, atira Freeman. “Os críticos de livros são avatars do prazer. Não gostam sempre de tudo, mas há muito alegria na partilha do prazer e da complexidade de um livro, ligando as suas melhores qualidades. Somos constantemente inundados pela simplicidade e pelo que há de belo, a cultura literária necessita de uma constante reafirmação da sua complexidade“.
Já na parte final, acabou-se a falar da auto-publicação e do importante papel desempenhado pelos editores. Werneck disse acreditar “nos editores como parte do diálogo com os escritores e a descoberta de autores. O diálogo entre o grande editor e o grande escritor é um dos grandes momentos literários. De intimidade. Um diálogo de alto nível. Claro que há grandes escritores que ficam à margem, mas isso faz parte. O salão dos rejeitados, com ressentimento, isso sempre vai ter“. Freeman defende que “em geral toda a gente precisa de um editor. O meu trabalho não é apenas corrigir o texto, mas também defendê-lo. As redes sociais existiam antes da Internet, apenas não eram exteriorizadas“. Sobre os nichos, Freeman dá como exemplo a sala bem composta que vai assistindo ao desenrolar da conversa. “Olhem para esta sala. Olá comunidade! Não planeámos esta conversa e misteriosas coisas aconteceram. Há algo biológico em nós que responde a leituras em grupo“, apontando o facto de a Freeman’s organizar cerca de 50 eventos por ano, onde tanto podem ir cinco pessoas como não haver espaço para todos. A terminar, disse ser importante não olhar tanto para o passado literário mas falar de problemas actuais como as alterações climáticas. “Daqui a anos vão perguntar porque não fizeram os escritores isso“.
Fotos cedidas pela organização do Folio.
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