“Flatland” (Porto Editora, 2016) não é um livro fácil. Os mais incautos correm o risco de serem apanhados desprevenidos pela sua portabilidade e leveza de imagem. O interior encerra uma leitura desafiante e exigente, requerendo atenção e abstracção. Acautelados estes aspectos preliminares entraremos num mundo imaginário, alicerçado em princípios e linguagem matemática, do qual se podem extrair reflexões e ensinamentos ético-filosóficos e até políticos.
A primeira parte dedica-se à apresentação d’ “Este Mundo”, o único possível e admissível – o “Mundo Plano”: “Imaginem uma grande folha de papel com Segmentos de Recta, Triângulos, Quadrados, Pentágonos, Hexágonos e outras figuras que, em vez de se manterem fixas, se movem livremente sobre ou, mais precisamente, na superfície da folha, sem que possam, contudo, erguer-se acima ou abaixo dela – muito à semelhança das sombras, embora rígidas e com contornos luminosos – e ficarão com uma noção bastante precisa do meu país e dos meus conterrâneos.” Um mundo onde tudo está perfeitamente definido – “Estima-se que a largura e o cumprimento de um habitante adulto do Mundo Plano não ultrapassem onze polegadas (…), indo no máximo até às doze” -, com uma forte estratificação social e de papéis: “As nossas mulheres são Segmentos de Recta.” “Os nossos Soldados e Trabalhadores das Classes Mais Baixas são Triângulos com dois lados iguais, com cerca de onze polegadas de comprimento, e uma base, ou terceiro lado, tão curta (em geral não excedendo meia polegada) que o seu vértice forma um perigoso e aguçado ângulo.” “A nossa Classe Média é composta por Triângulos Equiláteros, ou Triângulos de Lados Iguais.”
Neste mundo, a visão de si e dos outros está predefinida, com ângulos, olhares e interpretações perfeitamente estudados, estabilizados e encerrados. A forte estratificação social não consegue impedir as rebeliões e insurreições, mas consegue contê-las com recurso a favores e compensações que os líderes aceitam, fazendo ceder os ideais colectivos às benesses individuais, qual semelhança com outros mundos.
As mulheres são encaradas com desconfiança e fonte de perigo, quais semelhanças históricas com outros cosmos, menos planos: “Se o Soldado é uma cunha, a Mulher é uma agulha. Toda ela é AGUÇADA (…). Se a isso associarmos o poder de se tornar praticamente invisível, sempre que queira, concluiremos que uma Mulher do Mundo Plano não é para brincadeiras.”
A segunda parte corresponde à descoberta e ao reconhecimento de “Outros Mundos”, quebrando a cegueira, a falta de perspectiva e a hegemonia do “Mundo Plano”. Primeiro sob a forma de sonho, vivido pelo narrador protagonista e, depois, sob a forma de experiência vivida: “Era o último dia do ano de 1999 da nossa era e o ruído da chuva há muito anunciara o cair da noite. Eu estava sentado com a minha mulher, a recordar factos passados e a fazer projectos para o ano, século, e Milénio seguintes”, quando surgiu primeiro uma voz e depois uma imagem sem “o mais pequeno vestígio de ângulos, aspereza ou irregularidades.” Nunca na vida o nosso protagonista se cruzara com um círculo tão perfeito, inteiramente circular, vindo de uma terceira dimensão do espaço que, até então, se julgava inexistente, vindo abalar todas as certezas de então.
Livro escrito há mais de 100 anos por Edwin A. Abbott (1838-1926), “Flatland” é considerado uma obra clássica da ficção científica e uma fábula sátira ao período vitoriano em que viveu o seu autor, londrino, dedicado ao ensino, estudioso de Shakespeare e autor de mais de cinquenta títulos.
Considerado um exercício interessante de ideias e de teorias, onde se discute a geometria e se questionam convenções, apresentando conceitos que são ainda hoje discutidos pelos físicos teóricos, “Flatland” já foi adaptado para o cinema várias vezes, uma das quais em 2007 com a animação gráfica de Ladd Ehlinger Jr., que se recomenda como complemento à leitura da obra. A história passa-se num mundo a duas dimensões, graficamente semelhante com o jogo pacman, as personagens representadas sob a forma de figuras geométricas, quadrados, triângulos e círculos.
1 Commentário
Interessante
Um pastor falou desse livro, daí resolvi dar uma buscada
Espero que tenha um modo de baixá-lo, mas vou querer tê-lo aqui fisicamente
☺