Como refazer a vida depois de se ter experienciado o fim do mundo? É esta a pergunta que não sai da cabeça da personagem central de “Filhos do Rato” (Comic Heart/G. Floy, 2019), uma banda desenhada escrita por Luís Zhang e desenhada por Fábio Veras, que nos faz regressar à Guiné de 1974, num apelo ao baixar das armas:“Soldado português, deixa esta guerra fútil, não sofras mais a tirania dos teus líderes fascistas, não cometas mais crimes contra os teus irmãos da Guiné!”.
Um regresso de um homem perseguido, que vive numa ambivalência entre o tumulto e a paz, incapaz de se esquecer dos incêndios no mato, “desse fogo selvagem. Do que significa estar verdadeiramente vivo”. Vivem-se os últimos dias do Império colonial Português. Um soldado guineense, que lutou ao lado das forças portuguesas, inicia a sua descida a um Inferno muito pessoal, incapaz de concordar com uma máxima que lhe foi transmitida ainda em criança: “O caminho do ódio é o caminho para o vazio”.
Alguém que viveu entre duas espadas, capazes de um golpe profundo ao mínimo deslize: de um lado, vê-se dilacerado pelo desprezo e racismo que os soldados portugueses lhe manifestam; do outro, está o ódio e desejo de vingança dos combatentes anti-colonialistas após a queda do regime Salazarista e a independência da Guiné-Bissau.
No final, para além de esboços e diversas propostas de capa, é apresentado algum contexto histórico para o pós-25 de Abril na Guiné-Bissau, isto após o governo socialista português ter negociado a entrega das armas de todas as 27000 tropas guineenses que lutavam ao lado das Forças Armadas Portuguesas, sob a condição de estas não sofrerem quaisquer retaliações. Um acordo que acabou por se revelar uma fraude, tendo resultado numa série de perseguições e fuzilamentos. “Os números oficiais de execuções em praça pública rondam os 500, mas estima-se que pelo menos 11000 homens foram executados em segredo, sem julgamento, e enterrados em valas comuns. O resto dos sobreviventes foi aprisionado e torturado na prisão durante a década seguinte, ou fugiu. Até ao dia de hoje, nenhuma figura política foi punida pelo massacre, e as famílias dos falecidos nunca foram realmente compensadas pela sua perda”.
As ilustrações, navegando entre o preto e branco e as cores quentes do fogo, reflectem de forma magistral o lado grotesco e animal da guerra, o cérebro queimado pela liamba, o lado absurdo da condição humana.
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