“Com a exceção do nome da mãe, todos os outros foram alterados. Mas este é um relato verdadeiro, ainda que, na tentativa de fazer sentido, a nossa memória seja tantas vezes imaginação.”
Hugo Gonçalves, autor de “Filho da Mãe” (Companhia das Letras, 2019), romance que se segue a outros da sua autoria, permite que o leitor habite o seu mundo mais íntimo, partilhando relatos da sua vida pessoal e familiar, impregnados de reminiscências e de emoções. Como o próprio anuncia, trata-se de excertos de um mundo real, facto que, só por si, faz com que o leitor se sinta bafejado pela generosidade do autor que se desnuda perante o mundo. E fá-lo expondo processos de sobrevivência à morte, ao luto, à perda e a uma certa fobia de estar e ficar, mantendo-se compulsivamente em movimento e em mudança de vida, considerando-a capaz de caber em duas malas de viagem.
13 de março de 1985, “fui investigar todas as divisões, queria confirmar que a minha mãe não morrera, que se tratava de uma partida de adultos, de um erro que podia ser revertido”. A partir deste momento acompanhamos um rapazinho de 8 anos que se confronta com a inevitabilidade de não voltar a sentir o apego da mãe e que, sem o saber, reproduziu a sua procura e a sua perda pela vida fora, na relação com outras mulheres, na procura e no abandono recorrentemente presente na sua própria vida, na mágoa das relações com quem não a impediu de partir.
2015, “a minha avó materna entregou-me o testamento do meu avô dentro de um saco de plástico”, materializando a transferência de agruras e subterfúgios passados de geração em geração, o suficiente para Hugo Gonçalves, aos 39 anos de idade, às voltas com mais uma série de transformações na sua vida, regressado a Portugal, encetasse uma nova travessia, orientada para a recuperação, reconstituição e preservação de memória e de afectos. Um corajoso exercício de arqueologia, arquitectura e engenharia emocional.
Circular com “Filho da Mãe” exposto na mão ou de alguma forma oculto é como transportar um livre-trânsito de acesso a informação guardada em espaços recônditos do autor, mandatado por este para o acompanhar numa viagem de procura de informação que se julgava irremediavelmente perdida pelo facto do cérebro, à data, não lhe ter dado a relevância necessária para passar do sensorial a armazenamento de longa duração.
Pais, avós, tios, irmão são apresentados com minúcia e sem pudor, revelando influências, curiosidades e fragilidades. À colação são tocados temas como a droga, o HIV, o adultério e, acima de tudo, o cancro, essa “coisa ruim” que se receia, com a mera menção, acordar e ser contaminado, uma doença que se anuncia e instala no doente e nos que estão à sua volta, galopa e derrota a vida, corrói a esperança, amedronta e tudo consome.
”O cancro: um apaixonado pacto suicida unilateral, Ícaro a caminho do Sol, o bombista gritando a grandeza de deus.”
À pergunta de uma amiga sobre o ganho de saber tudo, Hugo Gonçalves não hesita em admitir que há qualquer coisa de desafio na procura, “como se estivesse de novo no apartamento, uma semana após a morte, e entrasse em todas as divisões esperando encontrar a minha mãe”. Examinada alguma ruminação, a determinada altura, a constatação: “Acredito que, caso me tivesse despedido dela (mãe), não estaria a escrever agora”.
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