A 12 de Agosto de 2022, ao subir ao anfiteatro de uma vila chamada Chautauqua, no Estado de Nova Iorque, para falar sobre a importância de proteger escritores ameaçados, Salman Rushdie foi atacado e quase morto por um jovem com uma faca. De início, parte do público julgou estar a assistir a arte performativa, mas não tardou a erguer-se gente que acorreu em seu auxílio e imobilizou o atacante. Rushdie experienciou assim, quase em simultâneo, o melhor e o pior da natureza humana: um ódio assassino e incapaz de se justificar contra um velho indefeso, versus o altruísmo de quem se arriscou para ajudá-lo.
“Faca” (Dom Quixote, 2024) – com o sub-título Meditações na Sequência de uma Tentativa de Homicídio -, o primeiro livro de Rushdie desde esse dia, é a resposta da arte à violência – uma forma de lidar com o acontecimento, através da qual recuperou a função de escritor. Afinal, a linguagem também é uma faca, na medida em que pode ”abrir o mundo e revelar o seu significado, o seu funcionamento interior, os seus segredos, as suas verdades”. Ela é o utensílio escolhido pelo autor para refazer o seu mundo, criando beleza pelo caminho, por mais terríveis que sejam alguns dos factos narrados.
Nesta obra, dedicada aos homens e mulheres que lhe salvaram a vida, Rushdie cruza o espaço e o tempo, mostrando como a faca rasgou a sua realidade. Descreve as lesões físicas e psicológicas, a reabilitação dolorosa e o stress pós-traumático. Partilha os pensamentos que lhe ocorreram nos momentos mais complicados, a gratidão pelas manifestações de apoio, o amor por amigos e familiares – sobretudo pela actual esposa – e a tentativa de reconciliar o presente com a saudade de “um passado irrecuperavelmente perdido”. Entre memórias, recorda inevitavelmente o choque entre “Os Versículos Satânicos” e o totalitarismo religioso que o condenou à morte, lamentando que isso distraia o público do conteúdo dos seus livros e o converta numa figura com a qual não se identifica.
“Na morte somos sempre gente de ontem, para sempre aprisionados no pretérito perfeito”. Tendo escapado a essa prisão, para onde uma faca tentou relegá-lo, recordando-lhe que os horrores do passado persistem e cruzam fronteiras, Rushdie acredita que a singularidade da sua vida o colocou no âmago de uma batalha entre a barbárie obscurantista e a liberdade de expressão, cuja fragilidade nos obriga a reconhecer. A sua coragem de recusar deixar-se silenciar é, por si só, uma tomada de posição a favor de uma sociedade livre e aberta, que não abdica de debater ideias. Quanto à sua escrita, é um exemplo de como a arte pode estimular a capacidade de pensar e desafiar a ortodoxia, ao mesmo tempo que reivindica o direito a existir e consegue sobreviver àqueles que tentam oprimi-la.
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