“É necessário, particularmente no mundo árabe, que a mulher tome as rédeas da sua vida, passo a passo, sem esperar nada de ninguém, e sem ser um espelho que reflicta o que os outros pensam que deveriam ser a sua imagem. A verdadeira questão consiste em que ela recupere a identidade que lhe foi roubada e desfigurada.”
Ficção e ensaio que ajudem a pensar o tempo presente: é este o objectivo da nova chancela editorial Sibila Publicações, criada recentemente por Inês Pedrosa. “Eu Matei Xerazade” (Sibila Publicações, 2017) – com o sub-título Confissões de uma mulher árabe em fúria -, de Joumana Haddad, é um relato cru e duro sobre o que significa ser uma mulher árabe na actualidade, quebrando, em cada capítulo, os estereótipos de clausura e proibição associados, por um número elevado de orientais, às mulheres desta cultura. Carta aberta a todos os leitores ocidentais e, em especial, aos orientais, que leva o leitor por ondas de forte indignação, misturado com doses de revolta e de esperança.
Xerazade, heroína celebrada na cultura árabe como “uma mulher culta, suficientemente engenhosa, imaginativa e inteligente para se salvar da morte” imposta pelo Rei Shariar na obra “As Mil e Uma Noites”, é a personagem central, mas nunca incluída directamente na carta de Joumana, que leva a escritora libanesa a debruçar-se sobre a vida da mulher árabe, colocando as suas próprias experiências em cima da mesa. O leitor é levado por um relato de exploração da liberdade, curiosidade e ausência de crença numa identidade religiosa superior entre as mulheres árabes da actualidade.
Virginia Woolf escreveu, tal como enumerou Joumana no seu livro, que o anónimo foi sempre uma mulher. Ao longo da história da humanidade, as mulheres sempre foram afastadas dos assuntos decisivos para a sociedade: era o dever dos homens e a mulher ficava encarregada, unicamente, de colocar-lhe um prato de comida na mesa e de ter todas as tarefas domésticas concluídas. Uma realidade que continua presente, de forma cada vez mais assustadora.
Joumana descreve vários episódios da sua vida para dar força às suas afirmações: quando descobriu um mundo totalmente novo após a leitura de Marquês de Sade, o momento em que sentiu a necessidade explorar o erotismo e o corpo na sua poesia ou ao lançar a Jasad, uma revista árabe com conteúdo erótico.
Longe de ser uma revista meramente pornográfica, em que o corpo pode ser consumido de forma rápida, Jasad foi a primeira revista árabe que se propôs a ser “uma indagação intelectual em torno da consciência e da inconsciência do corpo”. Reflectir sobre o corpo, o eixo central do ser humano, era para Joumana uma necessidade fulcral. Os aplausos no seu país não existiram e as ameaças violentas foram crescendo, uma situação determinante para a autora se afirmar como uma das maiores activistas árabes pelos direitos das mulheres.
Os episódios de “Eu Matei Xerazade” são de uma riqueza extrema pela honestidade de Joumana, ao dar a conhecer a sua própria realidade. É uma obra de aviso não só às mulheres árabes, mas a todas pela luta pelos seus direitos. Estar ao mesmo nível do homem não significa criar discursos de ódio: Joumana crê e repete que é necessário um trabalho das duas partes. Passado, presente e futuro interligam-se nas páginas deste livro, deixando o leitor em estado de alerta. No máximo, ficará em fúria por ainda faltarem tantas transformações na cultura árabe e no mundo.
Sem Comentários