Quando foi publicado em 1991, “American Psycho” chocou muito boa gente pela sua violência gráfica, misogenia e sadismo. Nos Estados Unidos, foi considerado o 53º livro mais banido e contestado entre 1990 e 1995 pela American Library Association. Na Alemanha, foi catalogado como “danoso para menores”, sendo as suas vendas e campanhas de marketing restritas entre 1995 e 2000. Outros foram mais longe, considerando que Patrick Bateman era uma espécie de alter-ego de Bret Easton Ellis, um tipo pouco dado à empatia – dito de outra forma, um psicopata.
Antes disso houve “Menos Que Zero”. Um livro que, mais do que uma grande trama ou personagens memoráveis, parecia inaugurar uma nova voz, quase um mantra psicotrópico, onde tudo tinha a ver com o entorpecimento e o alheamento – fosse ele sentimental, emocional ou político, isto num mundo onde eram as boas aparências que contavam. No recente “Estilhaços” (Asa, 2023), Ellis regressou a 1981 e aos tempos em que escreveu “Menos Que Zero”. Na altura, o autor tinha todos os ingredientes em coma da bancada, mas faltava-lhe ainda o jogo de cintura de um chef – e provavelmente a paciência – para manejar facas tão afiadas. Para quem leu “Menos que Zero”, será interessante regressar a este lugar de privilégio, onde meninos brancos, ricos e endinheirados vão vivendo na sua bolha, que rebenta no momento em que uma série de assassinatos começa a ter lugar, ainda que poucos pareçam dar-lhe grande importância.
O protagonista é o próprio Bret, então com 17 anos, a entrar com alguma nostalgia no seu último ano de liceu, debatendo-se com a sua sexualidade (será hetero, bi, gay?). Quando entra em cena Robert Mallory, um jovem atraente, carismático e que Bret apanhou em falso, Bret irá construir uma obsessão em torno dele, similar à sua inquietação com o Arrastão, o nome dado ao assassino em série que parece estar perto de chegar ao seu universo.
A voz de “Estilhaços” é, porém, a do Bret actual. Um Bret que, numa conversa que decorreu em 2023 na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, disse ser “mais compassivo com estas pessoas, com mais emoção, e não com a frieza de «Menos Que Zero»”, apesar de continuar a ser difícil descobrir qualquer sinal mínimo de empatia. Salta claramente à vista a ideia de privilégio, num mundo com poucas ou nenhumas variações cromáticas e no qual Ellis se mostra deslocado.
O sexo é uma presença constante, mas um sexo que não encontra espaço para o romantismo. À boleia dos cultos e dos serial killers da época, há aqui uma forte componente de thriller, mas “Estilhaços” não deverá ser lido como um policial. É, tal como em “Menos que Zero”, sobre um grupo de amigos em 1981, tocando em várias das obsessões do protagonista: ser escritor, a juventude, a frustração, sair de um mundo ao qual sentimos não pertencer e do qual queremos sair.
Há, pelo caminho, uma homenagem a várias das obras que iam chegando às salas de cinema nos loucos anos 1990 – e antes disso -, num romance que parece ser um exercício de catarse, uma introspecção literária na qual Ellis regressou a um momento fundador que, tal como um fantasma, parece não conseguir – ou querer – deixar para trás. Qualquer coisa como “Um Menos Que Zero” em edição revista e aumentada, que se lê como a sua obra definitiva. Uma autobiografia romanceada que mostra que, lá no fundo, há um pouco de Bateman em Bret Easton Ellis.
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