Maria Fernanda Botelho de Faria e Castro (1926-2007) foi uma das grandes escritoras portuguesas do seculo XX, com assinalável obra poética e obra ficcional, pelo que a reedição pela Abysmo das suas obras completas, iniciada com “Esta Noite Sonhei com Brueghel” (Abysmo, 2017), se saúda agora com indisfarçável entusiasmo. A originalidade da escrita de Fernanda Botelho na construção das suas narrativas, com apurado sentido do dramático, o perfil denso das suas personagens – com notório destaque para as femininas – e uma atenção muito peculiar aos detalhes e subtilezas, tornam o universo sobre o qual escreve sempre fascinante.
O percurso literário da autora é marcado pela imensa criatividade, coragem cívica e por uma discreta melancolia presente na tragicidade contida (ou não) das suas personagens, que inclui títulos grandes como Terra sem Música (1969), Festa em Casa de Flores (1990), Dramaticamente Vestida de Negro (1994), e Gritos da Minha Dança (o derradeiro livro em 2003). Fernanda Botelho que um dia escreveu: ”Dentro do meu cais, desfez-se a bruma./Um sorriso domou a tempestade./E o mundo se jogou na imensidade/duma pequena coisa, apenas uma.”
Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários em 1987, “Esta Noite Sonhei com Brueghel” é uma das obras ficcionais de Fernanda Botelho que faz (mais) um subtil e sofisticado retrato português. Um livro prenhe de analogias com o universo temático da pintura do excepcional artista flamengo do século XVI, onde Brueghel surge como o fio condutor num labirinto desesperançado – de personagens, de vozes, de situações, de circunstâncias e de tempos. O pintor é uma espécie de companheiro mental da personagem principal (Luiza, que escreve a sua autobiografia) e os elementos das suas telas servem para a compreensão da multiplicidade de situações vividas e partilhadas por ela na (muito) complexa estrutura narrativa deste livro.
Pieter Brueghel parece representar, por um lado, a ligação de Luiza com a mãe flamenga (aliás como o pintor) e preenche, por outro lado, a deriva imaginativa e onírica da personagem pelas telas do artista. Luiza interpela e é permanentemente interpelada por Brueghel: “(…) quando Brueghel se esforçava em vão por me reencontrar e comigo percorrer os seculos de retorno, até coincidirmos”. “Conheceste-o porventura Brueghel?(…) Estás a ver Brueghel?(…)E aqui estou eu, Brueghel, eu humilde descendente tua e do avô Damião (de Góis) à procura da pátria nos quadros que me devolvam a imagem da flamenga-minha-mãe (…)”.
Este livro tem dois períodos temporais absolutamente distintos – o passado de “há 12 anos“, no ano 1972, e o presente, no ano 1984 -, dois lugares – Bruxelas e Lisboa -, que a mundividência da autora nos dá a conhecer como ninguém e dois maridos – o primeiro, Rui, quando o livro foi iniciado, e o actual, Diogo).
Como explica Paula Morão na introdução, “se o manuscrito intitulado “Esta noite sonhei com Brueghel” é uma auto-biografia, e se nesta os participantes ou personagens são verdadeiros, como Luiza afirma (“conheço-as”, “são e não são. Não as inventei, por isso não são. Mas no manuscrito parecem personagens”), quer isso dizer que todas as armadilhas da verdade simulada pela ficção se encontram neste romance postas em cena com uma técnica de refinada competência“.
O uso da primeira pessoa e da terceira pessoa na mesma narrativa, em alternância constante e com uma mestria invulgar, “comandados ambos pela autora que a tudo preside (…)”, não permite qualquer desatenção por parte do leitor, que se mantém atento e interessado nos vórtices do enredo .
Os diálogos são formas inteligentes que Fernanda Botelho encontra para cruzar inúmeras vozes e uma plêiade de personagens com universos pessoais muito distintos, e esta é a grande perícia da autora, que dificilmente o leitor encontrará noutro escritor. Há uma catarse, digamos intelectual, em tudo o que Fernanda Botelho escreve e que, erroneamente, parece poder perder-se na frivolidade das situações de convívio social e no carácter superficial e até libertino de certas personagens. Mas não se engane o leitor, estes diálogos só o são aparentemente pois, afinal, encerram “as armadilhas da verdade simuladas pela ficção”, que justificam a procura permanente do auto-conhecimento de Luiza.
Episódios verdadeiros ou ficcionados juntam-se numa desapiedada história de uma mulher em busca de si.“Luíza é Fernanda – a sua, a nossa desassombrada efígie”, escreve justamente Paula Mourão no prefácio deste livro, romance auto-biográfico, talvez um dos mais emblemáticos da obra da autora.
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