Preparemo-nos para embarcar numa viagem à memória, à intimidade e à comoção. “Em Tudo Havia Beleza” (Alfaguara, 2019), do aragonês Manuel Vilas (Alfaguara, 2019) – “Ordesa” na edição espanhola -, é um exercício de audácia e de grande generosidade.
Manuel Vilas expõe neste livro o mais íntimo de si, retratando as relações com os seus pais e os seus próprios filhos, conseguindo neste duplo foco identificar padrões e contaminações – ainda que involuntárias – de medos, processos e emoções. Uma sinfonia que se ouve na sua plenitude quando nos dispomos a encarar a vida como um palco, uma peça, uma encenação, onde entramos sem conhecer o enredo e muito menos o epílogo.
Luz e obscuridade. Histórias. Batalhas. Som e surdez. A reunião de vozes de vários solistas que se vão revezando – pai, mãe, filho, … filho, mãe, pai, … -, vozes mais graves que conduzem e apoiam ritmicamente sons mais agudos, com vários andamentos, uns mais lentos e outros mais rápidos, mas como deve ser: com um último fôlego especialmente vivo e impetuoso. E, afinal, não será isso o que alimenta as relações familiares? A procura de equilíbrio entre afecto, compromisso, convenções e liberdade, o desafio de identificar o que em cada momento é determinante, seja a ruptura ou a continuidade, o grave ou o agudo?
Trata-se de uma narrativa de reminiscências, de perturbações e tentativas inevitáveis na vida em família. Em alguns momentos, a assunção de traumas, mágoas e sofrimento. Um reconhecimento da dor e da culpa associado à superação, como se reconhecer e aceitar o passado fosse condição para viver o presente e receber o futuro.
“Nunca me habituei a ser pobre. Chamo pobreza ao desamparo. Confundi pobreza e desamparo: têm o mesmo rosto. Mas a pobreza é um estado moral, um sentido das coisas, uma forma de honestidade desnecessária. Uma renúncia a participar no saque do mundo, é isso a pobreza para mim. Talvez não por bondade ou por ética ou por um qualquer ideal elevado, mas por incompetência na hora de saquear”.
Para contar a história dos seus pais, Manuel Vilas retrata a história da Espanha em que estes viveram: a Espanha dos anos sessenta e setenta, o crescimento económico à época e a estratificação social que expôs uma classe média deslocada e sofrida que se consome e compromete na ânsia de se afirmar.
Estivemos à conversa com Manuel Vilas no Instituto Cervantes em Lisboa, numa entrevista onde pudemos constatar a serenidade que o acompanha quando fala de si próprio e do seu livro – e, através deste, da sua família.
O que destacaria neste “Em Tudo Havia Beleza”?
É um livro sobre pais, mães e filhos, que procura criar no leitor vontade de pensar as relações entre todos eles. É também um livro sobre filhos – todos o somos. Alguns convertem-se em pais ou mães, mas antes de isso acontecer somos filhos. Para mim era importante que a narrativa desse espaço a esta dupla dimensão de pais e de filhos. Como livro autobiográfico que é, os acontecimentos relatados estão relacionados com a minha vida – ou, se quisermos, com a vida do narrador, uma vez que nenhuma das personagens é intencionalmente nomeada. Acima de tudo é um agradecimento ao meu pai e à minha mãe, um livro do amor a eles. Gostaria muito que quem esteja a ler este livro pensasse nos seus pais ou o inverso.
Porquê atribuir a cada personagem do livro o nome de um compositor de música clássica?
Queria que cada personagem tivesse uma relação com um compositor, escolhido pelas semelhanças de carácter. Wagner era dramático, daí a associação à minha mãe. Bach era música serena, espiritual, e o meu pai era assim. Para além de existir alguma preocupação em proteger a identidade das pessoas que trouxe para o livro, ao associá-las a compositores foi como se a minha família fosse música e harmonia.
Faltou atribuir um nome ou compositor ao narrador …
Interessante, nunca me tinham feito essa pergunta. Mas não sei responder. Não sei mesmo.
“Em Tudo Havia Beleza” é um título inspirador para um livro que tem a mágoa muito presente. Não deveria ser antes “Em Tudo Havia Dor”?
“Em tudo havia beleza” é uma frase do narrador que representa a alternância, na sua vida, entre dor e beleza. A ideia é deixar claro que a beleza surge quando se supera a dor. São dois sentimentos profundamente ligados, uma relação intimamente ligada ao termo grego catarse – dar nome ao que provoca dor como forma de superação. O livro faz também isso. O narrador deixou o álcool e divorciou-se, vivendo um momento de crise pessoal. É nesse momento de crise que procura os pais e decide contar a sua história, porque está só, desamparado, vendo neles o seu refúgio. Admito que é também um livro de fantasmas e da sua superação.
Não será também um livro de opostos?
Sim, claro. Há nesta história o reconhecimento da importância de tudo o que vivemos, até daquilo que nos faz sofrer e que, num primeiro momento, nos impele ao afastamento. Os pais do narrador eram ambos importantes para ele. O problema é que muitas vezes nos apercebemos da importância de um pai e de uma mãe apenas quando os perdemos, o que é doloroso. Quando morrem é tarde.
Que papel assume este livro na sua vida e na sua carreira?
É uma declaração de amor ao meu pai e à minha mãe. Quando o escrevi foi também uma terapia, uma alternativa a ir ao psiquiatra. “Ordesa” é o nome de uma montanha onde o meu pai – o pai do narrador – gostava de ir. Um lugar belo que o fazia feliz, e também por esse motivo uma homenagem. Depois de o ter escrito senti serenidade, tranquilidade, paz. Sim, tranquilidade. Noutra perspectiva, também um pouco de medo e de surpresa pela exposição, pelo êxito do livro. Queria escrever este livro mas agora persegue-me muito porque toda a gente o leu, muitas pessoas em Espanha abordam-me. Por vezes sinto-me um pouco perseguido pelo livro, mas tudo bem, estou contente, porque quando lêem o livro os leitores sentem a sua própria família, o seu próprio pai e mãe, e não o meu pai e a minha mãe. A minha família é um pretexto para que o leitor veja a sua própria família, o que me agrada. O meu pai no livro representa o pai do leitor.
O que se segue?
Quero continuar a escrever no mesmo registo, e o próximo livro será uma continuação deste. Depois de vinte e três anos como professor, há cinco que me consigo dedicar em exclusivo à literatura, duas fases da minha vida que se completam. Agora que os leitores reconhecem o meu trabalho como escritor e a imprensa o divulga, penso que posso dedicar-me apenas a ele. Sinto que tenho ainda muito para partilhar, que ainda há beleza para relatar.
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