Em 2020, Joana Leitão de Barros foi distinguida pela Academia Portuguesa de Cinema com o Prémio Sophia, pelo livro “Leitão de Barros: A Biografia Roubada”, que a levou a estudar a década de 1920 e a miríade de figuras fascinantes que a percorreram. A obra com que se estreia na ficção é um romance histórico sobre uma dessas personalidades, Genoveva de Lima Mayer Ulrich, mais conhecida como Veva de Lima, uma mulher dotada de uma combinação invulgar de inteligência, sensibilidade e ousadia. A propósito da edição de “Veva: A aristocrata intelectual e excêntrica que desafiou Salazar e os costumes da sua época” (Oficina do Livro, 2022), entrevistámos a autora, que nos revelou pormenores sobre o desenvolvimento deste projecto e aceitou o desafio de imaginar como se comportaria Veva de Lima na actualidade.
Depois de anos de dedicação ao jornalismo e ao género biográfico, como nasceu o projecto de escrita de um romance histórico sobre Veva de Lima?
Comecei a escrever sobre Veva de Lima no momento em que tive nas mãos a sua correspondência, muita dela na forma de rascunho, e as folhas dispersas onde ela anotava reflexões, pontos de vista e interrogações. O que estava lá ia muito para além do que se esperava da mundana arrogante e extravagante, casada com um respeitável Ulrich, que teimava em publicar mesmo sabendo que as suas aspirações literárias eram ridicularizadas. O que encontrei foi uma mulher muito inteligente e atormentada por uma sensibilidade que pensa doentia, muitas vezes deprimida, mas constantemente obcecada pelo palco e a manipulação.
Viajava compulsivamente, existe um fosso fundo entre ela e o país, que se acentua com o tempo.
No íntimo, Veva de Lima é uma mulher moderna que vive os anos 20 na sua plenitude, com grande espírito crítico. Tem uma relação extraordinária com o marido, que a ouve em todas as matérias. Veva vê-se superiormente perspicaz mas limitada ao reduzido espaço em que pode ser ela mesma. Ainda assim não se coíbe de ter opinião sobre política, publica artigos e faz conferências. Escreve sobre colonialismo e recebe ameaças de morte por causa disso. É monárquica e assusta-se com os regimes totalitários, pressente a monstruosidade do nazismo e declara-se publicamente anglófila.
Como não pode aspirar ao poder concentra a sua ambição na carreira do marido, que a adora, ignorando todos os limites e interferindo na sua situação. Trata Salazar com algum descaramento, que mistura com charme, camuflando a sua visão crítica, a bem do interesse de Ruy Ulrich.
Sente que houve transformações na sua forma de trabalho, ou na própria escrita, ao transitar para a ficção?
Veva de Lima existiu, respirou e foi amada, nunca consegui perder isso de vista. Procurei-a muito mais do que a ficcionei. O que aconteceu por mais do que uma vez foi ter escrito sobre um encontro ou uma circunstância e, algum tempo depois, ainda durante a escrita, ter descoberto que isso tinha realmente acontecido.
O que mais a surpreendeu na investigação que realizou para escrever esta obra?
Continuo a descobrir coisas sobre a sua vida e a pouco ortodoxa rede de cumplicidades artísticas. É uma surpresa contínua, até porque falta informação sobre o salon que era muito irregular, aberto ao ritmo dos seus estados de alma. Cada novo dado leva-me de volta a ela, uma proximidade feita de aparentes avanços e retrocessos que fazem com que tudo se rescreva na minha cabeça.
É-me fácil amar a minha personagem como uma grande desistente, o escape do estrangeiro e das viagens podem tê-la salvo mas também a reduziram, faltou-lhe dedicação na escrita e até no salon. Veva de Lima tem o talento mas escreve episodicamente, toca e foge, entusiasmada já com uma próxima viagem ou festa.
Logo no primeiro capítulo, mostra-nos uma artista que se ressente do menosprezo a que a sua obra é votada pela crítica, que encara a sua escrita como um capricho de uma senhora da sociedade. Todavia, como se pode explicar o facto – mencionado em “Veva” – de o seu nome ter sido ignorado por outra mulher, Teresa Leitão de Barros, nos dois volumes de “Escritoras de Portugal”, publicado em 1924?
O entendimento entre as duas seria muito improvável, é quase caricato imaginá-lo. Mas um grande livro poderia ter criado essa aproximação, suponho que sim, mas isso não acontece e Veva de Lima é excluída desse grupo de «Prosadoras e Poetisas de hoje». Nessa altura tinha já publicado Fantaisie de Printemps (teatro, 1916); Feminans imperans et imperium feminae (artigo no Diário Nacional, 1916); O crepúsculo das Nações (artigo no Diário Nacional, 1917); A borboleta (teatro, 1918); Fiordilinda, Lirial e Dulcineta (teatro 1917); À luz de um vitral (teatro, 1918); e O último lampadário (novela, 1920).
Teresa Leitão de Barros, minha tia-avó, era dura e inflexível nas suas avaliações, se bem que no mundo dos afectos e da família fosse doce, generosa e até desprotegida. Penso que Teresa Leitão de Barros terá tentado ser rigorosa e abrangente na selecção que faz: inclui Florbela Espanca, Ana de Castro Osório, Virgínia de Castro e Almeida, Laura Chaves, Alice Moderno, Oliva Guerra, Branca de Gonta Colaço, Fernanda de Castro, entre muitas outras. Note-se que muitas delas eram amigas, existe grande cumplicidade e intimidade entre elas.
Veva de Lima representa parte daquilo que a crítica, que é professora e escritora, mais abominava; o espalhafato e o desplante da burguesia endinheirada. Era uma senhora espartana e solitária a quem a família pedia em vão para substituir o velho chapéu e que evitava visitar os amigos quando sabia que tinham outros convidados.
Teresa era muito próxima de Fernanda de Castro, que frequenta o salon de Veva, de quem é amiga. Veva de Lima ter-se-á interessado e apoiado os Parques infantis de que Fernanda foi mentora dedicada.
Acredita que este seu livro levará leitores a descobrir a obra de Veva de Lima?
Suponho que o livro levará leitores a visitar a Casa Veva de Lima, nas Amoreiras, que se mantém intacta, e que receio seja o seu maior legado artístico. Veva de Lima representava-se e aquela casa era o seu palco, singular e desconcertante. Não tendo sido musealizado mantém muito da escritora, que se espera entre nas salas a todo o momento.
Ainda existe muito por estudar sobre a escritora e também sobre Ruy Ulrich, espero que o livro venha a inspirar maior investigação e que os livros de Veva de Lima venham a ser lidos e contextualizados na produção da altura.
O que mais se pode fazer para combater o esquecimento em que caíram outros autores e autoras da mesma época?
São realmente muitas as mulheres escritoras deste período que foram apagadas, basta folhear a Ilustração Portuguesa para entrar num universo muito rico. Existiu segredo e silêncio à volta delas. O que podemos fazer? Lê-las, seguir os seus passos, biografá-las, contar a sua história no cinema, ir buscá-las.
No seu tempo, Veva de Lima foi uma mulher ousada na manifestação de firmes opiniões políticas e sociais. Como imagina que ela encararia a nossa actualidade?
Em 2022 Veva de Lima teria poder e uma voz pública forte, estou certa disso. Como dramaturga, argumentista, actriz ou encenadora, talvez. Ou como diplomata, ou governante. Daria pulos na cadeira com a geopolítica mundial e escreveria artigos demolidores. Seria levada a permanecer naquilo a que se dedicasse, estudaria mais facilmente as questões e teria já tratado as suas depressões, eventualmente. E continuaria a não usar o nome do marido, uma impertinência na época e uma normalidade nos dias de hoje.
O que nos pode adiantar sobre os seus próximos projectos literários?
Existem várias histórias que se estão a impor, vamos ver. E estou na fase de investigação para a construção de uma entrevista de fundo, que assinalará os dez anos da morte de um dos nossos grandes pintores do século XX.
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Foto: António Pedro Ferreira
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