Depois de uma “Intempérie” onde se fizeram sentir os ecos da escrita de Cormac McCarthy, Jesús Carrasco está de regresso às livrarias portuguesas com “A Terra Que Pisamos” (Marcador, 2017), um livro que mantém uma forte ligação à natureza, um alto índice de violência e que aponta o silêncio como um dos motores das emoções humanas. Estivemos à conversa com o autor espanhol durante a recente edição do LeV – Literatura em Viagem.
De onde vem o apelo naturalista dos seus livros, que parecem trazer consigo o cheiro da terra?
Da minha própria vida. Nasci numa aldeia em Olivença, e vivi com a minha família numa outra pequena aldeia, perto de Toledo, lugar onde decorre a minha primeira novela. Vivi aí até quase aos 20 anos, pelo que a minha formação como ser humano condiz com a paisagem rural espanhola, num contacto muito directo com a natureza, com o campo. A minha identidade configura-se neste espaço natural e aberto, e o meu próximo livro manterá essa relação. Como sociedade existem muitos problemas que teremos de enfrentar, e um desses é o do meio ambiente. Um problema sério que condiciona todos os outros, como o bem-estar, a dignidade e os direitos dos seres humanos. Há para mim uma relação muito íntima entre natureza e dignidade, e isso é algo que está no centro da minha pesquisa e investigação literária.
O seu universo é, também, feito de muitos silêncios, onde a emoção se revela através do indizível que nos é traduzido por gestos e olhares. Não é muito comum, na ficção, uma escrita assim, onde o diálogo é quase uma nota de rodapé. Como chegou até aqui?
Suponho que através do meu pai, que era um homem muito silencioso. Aprendi muito com ele, apesar de não falar muito comigo. Uma forma de ensino que tinha a ver com a atitude, com a forma de estar no mundo, independentemente da sua verbalização. O silêncio é um espaço necessário que recebi do meu pai e, hoje em dia, com toda a tecnologia, preocupa-me a ausência desse espaço vazio, para poder pensar e sentir, para poder estar num lugar e experimentar o tempo e a vida. Utilizo esse silêncio e esse ritmo lento para dar espaço ao leitor, para que este possa interpretar o silêncio de acordo com a sua própria experiência. Por vezes não são precisas palavras para descrever o que uma personagem sente, basta apontar certas coisas e deixar que seja o leitor a abordar o seu medo, a sua esperança, o sentimento que está presente a cada passo da novela.
Ao ler “Intempérie”, não pude deixar de me sentir transportado para dentro de “A Estrada”, de Cormac McCarthy, um livro feito de desolação e esperança. Reconhece alguns ecos do escritor norte-americano?
É curioso, porque reconheço uma influência muito forte de McCarthy na minha forma de escrever, mas não particularmente desse livro. Acabei de escrever “Intempérie” antes de ter lido “A Estrada”. É um livro extraordinário, mas Interessa-me mais o McCarthy de “Meridiano de Sangue”, um livro de uma poética macabra e obscura, muito críptica, que deforma a prosa e nos transporta a um lugar que para mim é muito expressivo, com os seus silêncios e imagens que produzem estranheza.
Pode dizer-se que o mal é a sua grande obsessão, convertida em literatura?
É uma obsessão literária porque é também uma obsessão humana. Preocupa-me porque não o entendo, não entendo os seus mecanismos, como opera. Observo-o mas não compreendo como o ser humano pode canibalizar outro ser humano, como pode ser cruel consigo mesmo. Não compreendo as prisões, entendo-as e julgo que deve haver um lugar à parte na sociedade, onde os indivíduos perigosos possam estar, mas como conceito não o entendo.
No seu novo livro escreve a partir do ponto de vista de uma mulher, Eva Holman, que através do contacto proibido com um estranho vai descobrir não apenas a verdade sobre o Império mas também a sua própria essência. Como foi vestir as saias de Eva e construir uma personagem feminina?
Gostei muito de escrever esta personagem, é a que tem a forma de expressão mais poderosa. Obrigou-me a observar as mulheres que me rodeiam, a tentar compreender a forma feminina. A escrita deste livro fez-me constatar o valor da sua posição na vida, da forma como foram obrigadas a encarar a vida durante séculos, em silêncio na maior parte das vezes, e isso assombrou-me. Eva comporta-se como uma leitora, interpretando todos os silêncios, mas também como uma escritora, construindo um possível relato do que sucedeu num lugar onde houve uma invasão e um genocídio. Eva é um intérprete da realidade, como todos o somos.
É um livro onde o mal parece ser uma inevitabilidade entre os seres humanos, passado de geração em geração onde o ódio ao próximo é passado através de histórias que se contam ao adormecer. Considera que vivemos actualmente tempos de ódio ao próximo?
Sim, para mim isso é óbvio. À medida que uma sociedade empobrece abre caminho para novos e velhos ódios. As consequências da crise económica de 2008 trouxeram consigo novas formas de ódio, de populismos e de novos fascismos, na Europa e no mundo, que estão intimamente ligados às ideias de riqueza e de pobreza. A Europa devia ser um santuário dos direitos humanos.
Em que medida o lugar onde nascemos nos condiciona?
Tenho a sensação de que cada vez menos. No centro da minha nova novela está essa preocupação, a do regresso ao ponto de partida. Era o ciclo dos nossos pais e avós, que queriam ser enterrados no lugar onde haviam nascido, junto dos seus familiares. Hoje em dia há cada vez uma relação mais débil com o lugar onde nascemos, por haver muito mais mobilidade. Nascemos num lugar, estudamos noutro, trabalhamos noutro. A globalização e esta sociedade cada vez mais homogénea acabam, entre outras coisas, com esta relação entre identidade e lugar, somos cada vez mais móveis e plásticos. Não deixa de ter coisas boas, mas para mim há algo de misterioso e bonito com o desejo de querer morrer no lugar onde se nasceu. Há um vínculo com a terra que não gostaria que se perdesse, até porque esse vínculo, como questão emocional, garante mais a protecção do lugar. Um ser humano que tem uma relação íntima e emocional com um lugar no mundo está mais capacitado para entender e cuidar de todos os outros lugares.
O seu próximo livro vai dar-nos novamente um murro no estômago ou será mais uma palmadinha nas costas?
Espero que seja um forte aperto de mãos. Estou a escrever uma novela que parte de uma necessidade minha de parar de escrever sobre a dor, de me dirigir ao amor e à parte mais luminosa das coisas. Tento fazê-lo com a mesma intensidade, com a mesma força, revelando com a escrita o que de mais poderoso há na vida. Seja isso a dor ou o amor.
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