No universo literário, muitos são os livros narrados por crianças passados durante a infância, mas talvez se contem pelos dedos de uma só mão aqueles que colocam uma miúda de 9 anos a falar, entre a antecipação e a descoberta, sobre sexo, com tanto de terna perversidade como tocante candura. “Vozdevelha” (D. Quixote, 2023), o primeiro livro da espanhola Elisa Victoria (n. 1985) com edição portuguesa, tem como protagonista a intrépida Marina, auela amiga que sempre quisemos ter em crianças e pela qual ainda ansiamos na idade adulta. O Deus Me Livro esteve à conversa com Elisa Victoria na última edição das Correntes d`Escritas, e só faltou mesmo a voz de Whitney Houston a servir de banda sonora. E um gelado.
Muitas vezes, e mesmo que a qualidade literária esteja em grande nível, há romances aos quais parece faltar uma voz. “Vozdevelha” tem essa voz: a de Marina, uma miúda de 9 anos que mistura um lado de muita candura com uma curiosidade que revela alguma perversão – ou, pelo menos, uma lata tremenda. Não é todos os dias que vemos, num romance, uma miúda de nove anos a pensar tanto em sexo – perdi a conta ao número de vezes em que surge a palavra “foder”. De onde surgiu esta voz?
Dei-me conta de que havia trabalhado muito com perspectivas infantis, contadas na primeira pessoa. Tinha escrito, para muitas antologias, relatos e histórias sobre a infância, um período muito complexo que me atrai, e percebi que havia ainda muito a retirar desta minha obsessão. Compilei muita informação, tentei recordar como me havia sentido enquanto criança, investiguei sobre a infância de outras pessoas e a forma como recordavam esse contraste entre a infância, a obscuridade e os temas tabu que, na generalidade, interessam quase sempre às crianças. As crianças são muito inocentes mas, a maioria, é atraída pelo proibido, a curiosidade tem muito peso. Pareceu-me então divertido criar uma personagem feita de contrastes, que tivesse em si ternura e pensamento mágico mas também um conhecimento mais bruto.
Marina é a amiga que sempre quisemos ter em crianças e pela qual ainda ansiamos na idade adulta?
Sim, mas com muitos problemas para se relacionar (risos).
Ainda assim parece estar no bom caminho.
Sim? Obrigado (risos).
Para compensar todo o seu existencialismo e espírito inquieto, fala-se muito de cocó e de rituais com papel higiénico.
São temas muito fascinantes na infância. As crianças são atraídas por observar o funcionamento do seu corpo e todo esse mecanismo da ingestão da comida que se transforma. É como se houvesse um mistério dentro deles, algo que aqui resulta em algo de muito divertido. Todas as minhas personagens têm algo relacionado com o funcionamento do corpo, é uma informação relevante que gosto de receber. Como leitora, ou espectadora, gosto de saber quando as personagens vão à casa de banho, quando tomam duche, como vivem esses pequenos rituais, porque nos dizem muito sobre a personalidade de cada uma delas. São elementos valiosos.
Outra presença assídua é a da religião, seja com a adoração de Marina – a única da turma que tem a disciplina de Ética em vez de Religião – pelos Reis Magos, a sua entrevista/performance no colégio de freiras onde a mãe estudou, ou a sua desilusão precoce com Jesus Cristo, que falhou em castigar a “colega raivosa” no jardim infantil. É impossível pensar na Espanha sem o selo do catolicismo?
É difícil, em Espanha a religião católica tem muito poder na cultura e na sociedade. Mesmo Marina, que de certa forma vive à margem de uma educação religiosa, vê a dado momento a sua família recorrer à instituição religiosa por uma questão de necessidade. E, mesmo que não seja por aí, a maioria das crianças continua a passar por todos estes ritos: o baptizado, a primeira comunhão, a ida a algumas missas.
É sobretudo através da religião que Marina solta a sua ironia.
Marina tem uma visão muito particular da religião e de Jesus Cristo. Ainda por cima é sevilhana, cidade onde a semana santa é crucial para a sua cultura. Olha para a religião como um meio para impedir que a sua mãe não morra, e por isso reza e fala directamente com Jesus, que actua como um mediador para a salvação do outro.
A literatura surge muitas vezes como uma tábua de salvação na infância. No caso de Marina, esta tábua são sobretudo as revistas de banda desenhada, onde está reunido o seu grupo de amigos imaginários e da qual fala como um “romance clandestino”. Assim de repente, e uma vez que estamos a falar deste mundo feito de quadradinhos, vinhetas e tiras, Marina parece ter em si um pouco do fogo da Mafalda de Quino.
Poderiam ser amigas, sim. Dar-se-iam muito bem. Marina não o menciona, mas creio que conheceria a Mafalda, sem dúvida (risos). As referências aos comics e à banda desenhada são um pouco o retrato do que eles significaram para a minha geração. Como eram vistos, de forma algo inocente, como desenhos, não eram obejecto de uma grande supervisão. Um pouco como os filmes de terror que, nesse tempo, eram considerados infantis e divertidos, mas que na verdade eram bastante sangrentos e violentos. Isso marcou muito essa geração, que se tornou um pouco perturbada mas também um pouco louca, com muitas ideias criativas e uma estética que abriu caminho à imaginação.
Há, nas linhas e entrelinhas, uma ode à mulher, seja através da transformação do corpo como da preservação da memória familiar. No caso de Marina, são as mulheres que lhe constroem a ponte entre o passado e o futuro: “A minha herança vem-me sendo transmitida só por mulheres, mais ninguém conta as histórias da família, mais ninguém toma as decisões importantes”. É um livro feminino, este?
Há, de certa forma, uma ode à memória e ao intimismo do lugar, mas terem sido mulheres a vivê-la foi algo casual. O livro acabou por se revelar uma espécie de resposta a todos os romances escritos por homens, nos quais as figuras masculinas são sempre as mais relevantes dentro da história. Foi uma forma de mostrar como funcionam as coisas quando os homens não detêm o poder dentro de uma família. A dado momento, dei-me conta de que o conteúdo político estava lá, e que poderia ser visto dessa forma. O que me pareceu bem.
Marina está naquela idade em que, quase sempre, se pensa que os amigos vão durar para sempre. Ela, contudo, parece ter uma ideia muito sui generis – e mais realista – do que é a amizade. Seja quando fala da amizade com Tamara – “Reconheço que é uma das minhas amigas menos problemáticas” – ou das amigas com quem, desde muito cedo, cultivou uma “inimizade inconsciente”. É curiosa esta forma de olhar a amizade como algo não permanente.
Para ela trata-se de uma situação um pouco frustrante, pois gostaria que as suas relações fossem mais duradouras. Por estar sempre a viajar de lugar para lugar, pergunta-se se valerá a pena fazer o esforço de se integrar, o que resulta numa imobilidade marcante na sua comunicação com os outros. Um pouco aquilo que acontece quando crescemos. Mas na infância o tempo corre de outra forma.
Ao longo do livro, são muitas as referências a desenhos animados dos anos 1990, como Dragon Ball ou Chico Terramoto, um rapaz baixinho com o fetiche de querer levantar qualquer saia no caminho. Este Chico seria cancelado nos tempos actuais?
Nos dias de hoje, Chico Terramoto não passaria na televisão, e parece-me bem. Na altura era algo que nos encantava, mas a verdade é que esse gesto normalizava uma agressão, dando a imagem de que os rapazes tinham uma liberdade maior e que as raparigas tinham de a aceitar de forma passiva. Era realmente uma agressão, entendo que agora não passe na televisão.
É curiosa a forma que Marina arranja para descrever a escola: “essa prisão coberta de cartolina às cores e mãozinhas esbranquiçadas de crianças sequestradas”. O ensino e a educação são, aliás, presença recorrente em “Vozdevelha”. A certa altura, Marina diz isto: “Só por ter tanto que estudar já tenho preguiça de crescer”. E, mais à frente: “Quase nunca nos ensinam coisas úteis, que nos ajudem a resolver a vida, a compreendermo-nos, a cuidarmo-nos. (…) Obedeço, mas não esqueço o que sabia antes”. O ensino precisa de uma Marina como Ministra da Educação?
(Risos) Não seria mau, a rapariga tem muitas ideias. A verdade é que me preocupa muito o sistema educativo e a sua forma de organização, que tem muitas limitações. Em criança, quando estava na escola, falávamos sobre sentirmo-nos sequestrados, sensação que se manteve ao longo das décadas. Quando hoje falo com crianças que frequentam a escola, todas se sentem de certa forma prisioneiras, cansadas, e num sistema que lhes é imposto. A escolarização tem uma parte positiva, obviamente, mas a forma de actuar sobre as crianças é um pouco violenta e aborrecida. Por isso há este seu desejo de imaginar o tempo em que serão maiores e livres, mas depois chega o mercado laboral e a constatação de que a liberdade real, afinal, não irá chegar nunca – a não ser que tenhas muito dinheiro que te permita não cumprir com qualquer obrigação. Ao lermos este livro enquanto adultos, e vendo que Marina deseja crescer para se poder tornar naquilo que deseja, não deixa de dar uma certa pena saber que, na realidade, a sua ilusão dificilmente será cumprida. Tal como a escola, o mundo é um lugar um pouco limitado.
Não sei se foi essa a tua intenção, mas “Vozdevelha” acaba por ser um romance inclusivo – sobretudo naquela ponta final de grande fôlego.
Interessa-me muito a representação do colectivo queer, em geral. Uma vez que Marina comunicava com a sua avó de forma muito fluida, pareceu-me bonito incluir um diálogo no qual se mostrava como uma pessoa de confiança, adulta, poderá receber a informação de que uma criança gosta de alguém do seu próprio género. Marina gosta de rapazes mas, a dado momento, comenta com a avó que há uma personagem feminina da novela da qual gosta muito, e a avó não lhe dá qualquer importância no sentido negativo ou revelando uma preocupação. Quis representar essa saída do armário de forma natural, o quão fácil poderá – ou deveria – ser.
Através desta menina de 9 anos, percebemos o quanto temos falhado como espécie, e que a história do bom selvagem de Rosseau não passa de uma grande treta: “Algumas crianças são o raio de um amontoado de maldade, autênticos sujeitos perigosos. Isto pode ser evitado através da educação? As crianças más saem más porque os seus pais também o são, e transmitem-no sem se aperceberem?”. Como é que a escritora Elisa Victoria responderia a Marina?
É inverosímel que, com 9 anos, se possa encontrar uma resposta a perguntas tão filosóficas, mas o livro que lancei depois, e que se chama “El Evangelio”, é em parte um diálogo com esta “Vozdevelha”. No sentido em que a protagonista, que tem vinte anos e estuda para ser professora, acaba por responder em parte a essas perguntas. A maldade do ser humano é potenciada em parte pela educação, que segue um modelo tóxico que se tem perpetuado durante séculos. Na própria escola, há factores que se potenciam, como a competitividade, que é algo bastante venenoso, ignorando-se o incómodo sentido pelas crianças. Os pais são também muito exigentes com algumas coisas e pouco com outras. E isso pode gerar uma certa insatisfação, que se traduz num comportamento maléfico que, muitas vezes, tem origem numa dor, numa perda. É possível que haja gente geneticamente má, mas não tanta como toda a gente má que existe no mundo. Creio que a grande maioria é má por não ter sido bem recebida no mundo, um lugar um pouco violento.
Tens tido comentários ou reacções sobre o facto de este ser um livro protagonizado por uma criança que pensa muito no sexo e no corpo, e sobre se isso lhes parece ou não credível?
É um tema que interessa muito mas não a toda a gente, falemos de crianças ou de adultos. Há quem nunca se interesse pelo sexo, há quem se comece a interessar quando tem 17, 20 anos. Mas estatisticamente é muito frequente que haja um interesse em pensar sobre o presente do corpo, o futuro do corpo, imaginar como será usado com outra pessoa quando se for maior, desejar que isso aconteça, imaginar como será vendo filmes ou brincando com bonecos. Era fundamental que no livro isso fosse um assunto tão importante quanto os outros, e sabia que isso iria gerar reacções de repulsa: de gente que não viveu dessa forma, de gente que se esqueceu que era assim ou, simplesmente, de gente que simplesmente não gosta da ideia de crianças a pensar em sexo. Mas há também muita gente que se reconheceu no livro, e que agradeceu por se ver nele nele representada. A sexualidade na infância é um tema que está a reivindicar-se, e que aos poucos deixa de ser um assunto tão tabu. Sabia que muitos leitores me iriam fechar a porta na cara em certas passagens, mas foi uma aposta decidi tomar e da qual não me arrependo.
Para terminar. Dirias que, na vida, tentas ser mais como Whitney Huston ou John Wayne?
Whitney Houston, sempre (risos).
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Foto: ©Joaquín León
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