Numa entrevista dada ao Deus Me Livro, Afonso Cruz referiu a certa altura a teoria do macaco bêbado, que defende que o homem só se terá sedentarizado por causa da cerveja. Ou, dito de outra forma, em busca do etanol, uma fonte de açúcar que provinha dos frutos já fermentados. É giro imaginar o começo da civilização desta forma algo alterada, mas giro é também chegar a casa, abrir o frigorífico e, mesmo por cima da gaveta dos vegetais e ao lado dos molhos e da tigela com o resto da última refeição, encontrar uma cerveja bem fresca, de preferência artesanal.
Resultado de uma parceria entre Bruno Aquino (BA), o rosto da cerveja artesanal em Portugal e um dos seus grandes embaixadores fora de portas, e Domingos Quaresma (DQ), que se fartou de jogar à carica em jovem e talvez tenha feito aí a promessa de escrever o primeiro livro sobre cerveja artesanal portuguesa, “Uma Viagem Pelo Mundo da Cerveja Artesanal Portuguesa” (Casa das Letras, 2019) propõe uma visita guiada a este mundo onde é necessário escolher bem o copo, e que abrange história, ingredientes, estilos e harmonizações com comida e, bónus dos bónus, uma espécie de guia para que cada um faça a sua própria cerveja. O Deus Me Livro esteve à conversa com estes dois mestres cervejeiros, e só faltou mesmo fazer uma saúde.
De onde veio esta vossa paixão pela cerveja?
DQ – A paixão pela cerveja faz parte do gosto por comer e beber, é quase que uma obrigação darmos o devido uso aos nossos sentidos, experimentando os maravilhosos aromas e sabores duma boa cerveja. Mas poderíamos também aplicar este princípio a um bom queijo e a um bom pão. A cerveja é, sem dúvida, a bebida alcoólica com mais variedade e mais estimulante que nos é oferecida.
BA – Como o Domingos refere, é algo que nos parece lógico se formos pessoas que apreciam a boa comida e bebida. Porquê beber algo anódino se podemos desfrutar de um produto cheio de aroma e sabor, com cores e carbonatações diversas, e uma magnífica história de milhares de anos? Sempre gostei de beber cerveja e quando estive na Bélgica, pela primeira vez, já lá vão umas duas décadas, percebi que a maneira como eles tratavam a cerveja era similar à forma como zelamos pelo vinho em Portugal. E porque não? Dar o devido destaque à cerveja tem sido, desde então, uma das atividades a que me tenho dedicado com mais gosto na minha vida. Há hobbies piores, parece-me!
Portugal assistiu em anos recentes a um verdadeiro boom no universo das cervejas artesanais. A que se deveu este despertar da consciência artesanal?
DQ – O movimento de cerveja artesanal, que dantes se chamava cerveja caseira porque era feita em casa, começou como um hobby para muita gente que, com o passar do tempo e a reacção positiva de quem experimenta, foi “profissionalizando” e tem hoje excelentes cervejas ao nível do que melhor se faz actualmente em todo o mundo. No fundo, o timing é só o resultado da evolução natural desta actividade, que noutros países, como começou há mais tempo, está já mais desenvolvida.
BA – Creio que as pessoas estão cada vez mais despertas para este tipo de produtos que cabem todos dentro do chapéu “artesanal”. São os gelados artesanais, o pão feito a partir de massa-mãe, os vegetais e frutos biológicos, o vinho natural ou biodinâmico… A cerveja acompanhou esses movimentos, que no caso desta bebida vinham já a ser desenvolvidos desde as décadas de 60 ou 70 em países como o Reino Unido ou os EUA. E, na verdade, descobrindo-se que a cerveja pode apresentar essa coisa estranha que é ter aromas e sabores marcados e interessantes, quem, no seu perfeito juízo, vai querer voltar atrás?
Já há algumas marcas que podem sonhar com levar para casa distinções internacionais ou, por esta altura, ainda somos uns rookies ao pé dos profissionais de outras latitudes?
DQ – Sim, é verdade, mas o facto de sermos rookies, e de facto somos, não implica que não possamos ter cervejas de topo a nível mundial. No fundo, é mais uma questão de quantidade do que qualidade.
BA – Antigamente, criticávamos muito as marcas industriais bem conhecidas do mercado cervejeiro português por anunciarem dezenas de medalhas consecutivas em concursos internacionais que pouca gente conhecia ou que atribuíam medalhas começando no óleo 3A’s e acabando no esfregão Bravo. Por isso, não sou muito apologista de concursos que entregam medalhas a tudo o que mexa, apenas porque sim. A qualidade da cerveja artesanal portuguesa mede-se pelo respeito que algumas das nossa marcas atingiram fora de portas, fazendo com que estejam presentes em lojas e festivais internacionais, num crescimento contínuo que tem sido reconhecido pelos maiores bloggers, influencers, cervejeiros (e bêbados, claro) de todo o mundo. Não, não se trata de chauvinismo: acredito piamente que já temos qualidade que nos permite ombrear com algumas das melhores marcas do mundo.
Falem-nos um pouco do que vos levou a fazer esta viagem pelo mundo da cerveja artesanal portuguesa, e da forma como está organizado este livro/enciclopédia que mistura história, gastronomia e o espírito faça-você-mesmo.
DQ – Este livro é a nossa contribuição para este mercado. Pensamos que era o que fazia sentido ser feito neste momento. O nosso principal objectivo é difundir a cultura cervejeira num país que tem essencialmente cultura vínica. Cativar as pessoas que bebem cerveja industrial, e que são muitas, a entrar neste fabuloso mundo da cerveja artesanal. A parte principal do livro é, sem dúvida, a que explica como se apreciar cerveja. Assim, qualquer pessoa percebe imediatamente a diferença entre uma cerveja industrial, que tem andado a beber até agora, e uma cerveja artesanal, fruto do empenho, dedicação e paixão dum mestre cervejeiro.
BA – Foi uma boa desculpa para começarmos a beber logo às 10h da manhã e experimentarmos mais de 150 cervejas artesanais portuguesas diferentes. Na verdade, confessamos que também nos passou pela mente a possibilidade de criarmos algo singular no mundo da cerveja em Portugal: um livro sobre cerveja escrito por pessoas que são apaixonadas por essa bebida. É uma tentativa de compartir as conversas, conhecimentos e experiências que temos partilhado ao longo de 15 anos de amizade e de muitas cervejas saboreadas; de tirar a imperial do anonimato em que vive e dar-lhe um nome: Baltic Porter, American Pale Ale, Kolsch ou Russian Imperial Stout. Assim, procurámos abordar cada um dos temas que nos pareceram importantes para que haja uma verdadeira cultura cervejeira a nível nacional, por forma a que as pessoas sejam mais exigentes e informadas.
Para um leigo, tantas classificações, histórias e famílias cervejeiras poderá ter o mesmo efeito do que aquele provocado pela nomenclatura de casas e ligações parentais saídas da Guerra dos Tronos. Quanto tempo – e quantas cervejas – é preciso para decorarmos isto tudo de uma ponta à outra?
DQ – Depende mais da memória de cada um do que do número de cervejas que beber. Na realidade, o importante é perceber-se que existem vários estilos de cerveja e ir percepcionando as características de cada um.
BA – Para quem se está a iniciar, deixamos um bom conselho: leiam o nosso livro acompanhado de umas boas cervejas. As bases estão lá e quem quiser aprofundar os temas pode posteriormente fazê-lo, assim como nós também o fizemos ao longo dos anos. O objectivo não é criar beer geeks ou beer snobs, mas sim explicar que a cerveja tem uma história e tradição enormes e que, sim, existem mais de 120 estilos de cerveja, muitas variedades de copos, temperaturas de serviço e inúmeros outros aspectos. Não queremos que decorem nada; queremos, isso sim, que despertem para um mundo que eventualmente possam não conhecer e que, achamos, vos poderá trazer muitas alegrias aos vossos palatos.
Depois de umas semanas em regime artesanal, é seguro dizer que nunca mais uma cerveja de supermercado, mesmo contando com a promoção dos 50%, irá saber ao mesmo?
DQ – Sim, essa é a mais absoluta das certezas. É preciso provar uma boa lagosta suada para se perceber que delícias do mar não são marisco.
BA – Tudo tem o seu momento. Há lugar para o queijo fatiado tipo flamengo como também o há para o melhor queijo Serra da Estrela, feito a partir de leite cru de ovelha da raça Bordaleira. De igual modo, as cervejas de “supermercado” cumprem a sua função, assim como as cervejas artesanais procuram atingir um conceito diferente. O que nós pretendemos é que a prateleira com 30 metros que existe na zona de cervejas do supermercado não tenha apenas duas ou três marcas. Duopólios soa muito a Coreia do Norte e Guiné Equatorial. Numa democracia e num país livre, aproveite-se toda a diversidade que a imaginação dos cervejeiros coloca à nossa disposição.
Qual a melhor cerveja para oferecer aquela rapariga ou rapaz que queremos levar para casa debaixo do braço?
DQ – Depende muito do gosto da rapariga ou rapaz a impressionar. A variedade é tão grande que será muito fácil arranjar um bom exemplar com o match perfeito. A minha namorada adora cerejas, há um estilo Lambic, as Kriek, que são feitas com cerejas. É tiro e queda.
BA – Cerveja sem álcool. Como eu próprio não deixarei de beber cerveja, é melhor que a nossa companhia possa levar o carro até casa onde, então, podemos ir à adega privada e oferecer as melhores e mais exclusivas cervejas que temos armazenadas para aquele momento especial. Isso é amor!
A cerveja artesanal faz mais barriga que as outras?
DQ – Não, aliás nenhuma cerveja faz barriga, eu sou o melhor exemplo disso. Mas quem gosta de cerveja não está preocupado com a barriga, é bom que as prioridades sejam claras e bem definidas.
BA – Eu começo a perder a possibilidade de dizer: “olhem para mim! Já bebi cerca de 13 mil cervejas diferentes e ainda visto calças com o nº 40!” Mas a culpa não pode ser atribuída à cerveja. Queijos, pão, cabritos e borregos, marisco e gelados, têm tido um contributo muito mais importante para que, nos últimos anos, tenha fatalmente renovado quase integralmente o meu vestuário. Mas ainda neste Verão farei uma dieta líquida, tipo detox: só cervejas com menos de 20% de álcool. Fica a promessa.
Se tivessem de beber sempre a mesma cerveja, qual seria a rainha do baile?
DQ – Orval. Uma paixão que é eterna. Nunca me cansaria de beber Orval para o resto da vida.
BA – Apesar do crescimento exponencial da qualidade das cervejas artesanais portuguesas e, por outro lado, gostando de contrariar o Domingos apenas para que possamos estar a trocar argumentos durante largas horas como justificação para bebermos umas cervejas magníficas, neste caso tenho de concordar com ele: a Orval seria a minha cerveja Robinson Crusoé.
Entre a alemã, a belga, a inglesa e a norte-americana, qual o nome da escola que gostariam que o chapéu seleccionador gritasse?
DQ – Sou um fervoroso da escola belga, que conjuga na perfeição a tradição e a inovação. Nos tempos actuais presto a minha homenagem à escola americana a quem devemos muitas das tendências que vão surgindo.
BA – A minha formação cervejeira foi essencialmente feita com base na escola belga, pelo que tenho um grande carinho pelas cervejas e estilos desse magnífico país. Mas, na verdade, alguém faz melhores Lagers do que os alemães? E quem pode descurar uma boa Mild Ale, uma Brown Ale ou uma Old Ale, tão típicas da escola inglesa? Em termos cervejeiros, a diversidade é um dos valores que mais apreciamos, pelo que independentemente da origem, desde que tenham qualidade, não negamos à partida qualquer escola, estilo ou país de produção.
Para terminar: que cervejas estão neste momento a ganhar temperatura nos vossos frigoríficos?
DQ – Estamos no Verão e, portanto, as cervejas mais leves têm um papel mais importante. Saisons são as rainhas nesta época do ano. Como não sou capaz de viver sem IPAs, tenho sempre um stock de segurança confortável.
BA – Todos os dias vai variando. Para mim, ir ao meu frigorífico é como levar uma criança espanhola a uma loja de golosinas. E, em caso de dúvida, aplico o método científico: um dó li tá…
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