Antonio Prata (n. São Paulo, 1977) é, como costuma ser apresentado em muito boa publicação, um dos maiores cronistas da sua geração. Escreve na Folha de São Paulo há década e meia, e colaborou com a revista Capricho e o jornal O Estado de S. Paulo. É também autor de guiões para a Rede Globo, onde participou na escrita da novela “Avenida Brasil”, um dos maiores sucessos de audiências do canal. Publicou vários livros de contos e crónicas, entre os quais estão “Meio Intelectual, Meio de Esquerda” e “Nu, de Botas”, ambos publicados em Portugal pela Tinta da China. Aproveitámos a passagem do autor pelo Folio – Festival Internacional Literário de Óbidos para uma entrevista com muito sotaque.
Se, em “Meio intelectual, meio de esquerda”, encontrávamos “crónicas a grande profundidade, com escafandro e em modo de apneia”, que recorriam a um “humor de calção e chinelo, sem gravata ou paletó”, em “Nu, de botas” damos de cara com uma boa dose de melancolia ou, como costumamos dizer por cá, com uma certa saudade. Como foi fazer este regresso à infância?
A escola onde estudei em pequeno, entre os meus 2 e 6 anos, ia fazer 30 anos e convidaram-me para fazer um livro. Passei dois meses na escola, voltando às salas onde tinha estudado em criança, o que despertou muitas memórias de infância, que não tinham a ver com o livro. Comecei mais tarde a trabalhar nelas e percebi que tinha ali um livro. Nesse sentido é muito diferente do “Meio Intelectual, Meio de Esquerda”, uma colectânea de crónicas publicadas ao longo do tempo. Este foi um livro escrito com começo, meio e fim.
Até porque o estilo de “Nu, de Botas”, é bem diferente: mais profundo, melancólico, saudosista.
Acho que é um meio caminho entre a crónica e o conto. São histórias da minha vida, acho que há uma parcela maior de dor ali. Mas não muita, a minha vida também não foi assim tão sofrida.
Voltando a “Meio Intelectual, Meio de Esquerda”, a sua mulher já conseguiu esquecer esse eterno rebelde chamado Keith Richards?
(Risos) Já, felizmente. Aquele foi um momento difícil, é real aquela história. Ela realmente se apaixonou por ele, fiquei realmente com ciúmes.
E já teve tempo para arranjar uma forma de distinguir entre o reservatório da água e o do óleo?
Não, simplesmente jamais tentei novamente. O que não conto ali é que quando fui levar o carro para consertar, o cara tirou o filtro de óleo e falou: “O que é que aconteceu aqui? Eu nunca vi um filtro de óleo assim, está totalmente empapado, parece que foi regado“. Aí eu falei “Eu não sei, esse carro é da minha mulher, ela é que usa“. (Risos) Botei a culpa inteira nela.
Podemos considerar Woody Allen um dos seus mentores ou, refreando o atrevimento, uma inspiração?
Gostaria que sim. Mas acho complicado quando um autor ou qualquer artista fala dos seus mentores, porque se está a querer comparar. Quais são as suas influências? Um cara se coloca à altura e fala de Shakespeare, Cervantes, Dostoiévski, Proust. Mas gosto muito de Woody Allen e dos comediantes americanos no geral, como o Seinfield ou o mais actual Louis C.K..
Há, nas suas crónicas, inúmeras referências cinéfilas e televisivas, que vão do Kubrickiano 2001 ao netflixiano Breaking Bad. A televisão e o cinema são alimento de eleição para a crónica?
A crónica tem de se alimentar de tudo. Você está meio no deserto, qualquer cacto que aparecer você come. Não acho que isso seja um alimento especialmente bom. Fiz as contas no outro dia e estou chegando perto das mil crónicas. Escrevo uma crónica por semana há quinze anos. Esta garrafa de água é um bom tema, o GNR – diz, apontando para a capa do disco “Independança” que estava pousado na mesa -, mochila é um bom tema. É uma questão de escolher um lado e tratar bem dele.
Como qualquer bom brasileiro, o futebol parece ter uma importância relevante na sua vida. Aquele jogo com a Alemanha ainda está atravessado na garganta?
O 7 a 1? Não é bem atravessado na garganta. 2 a 1 teria ficado atravessado na garganta, aquilo é como se a gente tivesse jogado numa piscina de LSD, uma coisa muita esquisita. Na última crónica minha mencionei o 7 a 1. De novo. Acho que foi aí que o Brasil começou a desandar, depois disso nada mais ficou nos trilhos. É como se tivesse sido criado um buraco negro no bom senso nacional, e de lá para cá acontece uma coisa muito absurda no Brasil todo o dia, a gente começa a ficar meio habituado.
Continuando na peladinha e no pós Brasil-Alemanha, lê-se que “de lá para cá, foi tudo um 7×1. Sete a um na política. Sete a um na economia. Onde não tem lama, é deserto: uma aridez total”. Como está o Brasil por estes dias?
7 a 1, ainda. Tá muito ruim e o pior é que não há perspectiva de melhoras. Eu nasci no momento pior do Brasil, numa ditadura militar. Não havia democracia, não havia eleições para presidente, as pessoas podiam ir presas pelas suas opiniões. Mas fora da ditadura havia os heróis de que a gente falava: quando esses caras chegarem ao poder as coisas vão melhorar. Era uma situação pior mas com um futuro mais solar. Agora temos uma situacão terrível e não há para onde olhar, não há esperança. É um momento muito triste, uma decepção muito grande, até porque durante vinte anos parecia que ia dar certo. Tem uma frase do Stefan Zweig que dizia que o Brasil era o país do futuro, a vida inteira a gente ouviu isso e chegou um momento em que achámos que o futuro tinha chegado. As receitas eram muitas, a economia cresceu, a classe média fluiu, a pobreza diminuiu. Pensámos que estava resolvido e de repente as coisas não só tão voltando ao que era antes como, em alguns pontos, estão muito além, ficando muito pior. Esse governo está revertendo muitas das coisas boas que foram feitas, e o próprio governo do PT fez uma data de burradas quando esteve no poder.
Apesar de se considerar à esquerda, não deixa de mandar um recado à esquerda burguesa, um pouco como fez Gregorio Duvivier com o conceito de esquerda caviar. A esquerda de hoje já não é o que era?
O livro chama-se “Meio Intelectual, Meio de Esquerda” precisamente porque não me considero de esquerda, estou dentro do espectro da esquerda. No Brasil a esquerda está completamente perdida, até porque o governo que quebrou economicamente o Brasil se dizia de esquerda. Tem uma parte que nega que seja de esquerda e outra parte que acha que tem de radicalizar a esquerda. Mas a burrice no Brasil está em todas as áreas: na direita, na esquerda, tem uma confusão de ideologias e propostas.
Fiquemos agora nus mas sem tirar as botas. Ainda se sente culpado pelos dias em que faltou à escola com falsos pretextos? Como faz agora para descobrir “uma maneira de adiar o mundo, um salvo-conduto para permanecer boiando na realidade amniótica” de suas cobertas?
Não dá. Quando você fica adulto vira mãe e pai de si próprio e aí não consegue mais. Tem o fim-de-semana, férias, filmes, séries de televisão, cerveja. Amanhã vou com o meu pai comer um leitão ao norte de Portugal, acho que isso está bem próximo do líquido amniótico.
“Botas, sempre; cuecas, jamais”, é uma daquelas frases que poderíamos estampar numa T-Shirt que passearíamos não sem um certo orgulho tentando captar o interesse do sexo alheio. Foi um dos seus lemas enquanto garoto?
Tinha uma questão séria com as roupas. Não compreendia a razão de ter de botar calça jean, uma camisa com botões, um casaco de lã que penicava, o nariz escorria. Era como se de repente te obrigassem a usar uma caneta que tivesse lixa ou giletes que cortassem sua mão. A cueca é uma parte importância da infância, tem muito pudor. Você sabe que tem alguma coisa supostamente vergonhosa ligada às roupas intimas mas não entende exactamente porquê. Você sabe que o pinto é engraçado por alguma razão mas não sabe porquê. São temas poderosos que escondem mistérios. A cueca é um pouco como uma embalagem de uma kriptonite infantil.
Como estamos de bichos de estimação agora que está na idade adulta? A sua casa continua a ser “construída em cima de um cemitério indígena de animais”, sujeita à vingança de “espíritos de velhas antas, preguiças e lobos-guarás”?
Não, a minha infância vacinou-me contra isso. Não tenho qualquer vontade de ter bicho de estimacão. Quando fui conhecer a minha sogra há dez anos atrás, a minha mulher falou : Fica tranquilo, a minha mão é super tranquila, ela gosta de todo o mundo. A única coisa que ela não gosta é de quem não gosta de cachorros. Aí eu falei: Ela tem cachorros? E sim, tinha 11 cachorros. Cheguei lá e um poodle pulou no meu colo e me começou a lamber. Não é que eu não goste de cachorros. Tenho com os cachorros a mesma relação que tenho com os seres humanos. A gente está conversando, eu tou gostando de você, mas se você me lamber não vai ser legal. Acho que para um ser vivo lamber outro ser vivo tem de haver uma negociação, e uma negociação bastante complexa.
“Era assim, vendo lulas gigantes se contorcerem em chamas e besouros de seis metros pisotearem casas de isopor, ao cair da noite, que eu ia deixando para trás as obrigações de cada dia, me esquecia das tarefas da escola, superava eventuais picuinhas do recreio e entrava no clima da cama, à qual me recolheria não muito depois do jantar”. Em criança a resposta seria Spectreman, quando à idade adulta, o que faz agora para esquecer as obrigações de cada dia?
Um pouco tentar olhar as obrigações do dia como uma espécie de happy hour. A gente tem o costume de acreditar que o adulto é a versão final e que a criança é uma versão beta. Não é, são ambos seres humanos vivos, uma criança de 5 anos é um ser humano igual a um adulto de 40, e as coisas em que acredita aos 5 anos são tão sérias e verdadeiras quanto aquelas em que o homem acredita. Ou as coisas imbecis. Comprei há pouco tempo uma caixa com as 9 temporadas do Seinfield e a minha mulher quase me matou, falou que ninguém compra mais DVDs, já nem deve ter aparelho. Você pode ver isso na net. Mas eu quero ter, quero poder abraçar os DVDs, levá-los para o banho se quiser. E tem as drogas, as drogas ajudam. Uma vez escrevi um texto para um livro de auto-ajuda só com textos de humor, onde falava que tinham de dar álcool para as crianças naqueles momentos em que mais se precisaria: o primeiro dia na escola nova, pedir uma menina em namoro ou para dançar. Ajudaria bastante.
“…Estávamos na primeira década de 80: não se usava cinto de segurança nem protector solar, pessoas não andavam por aí com garrafinhas d’água, como se fosse o elixir da vida eterna, fazíamos cinzeiros de argila para os pais nas aulas de artes e o colesterol era apenas uma vaga ameaça de gente paranóica, como a CIA ou o KGB,,,”. Vivemos actualmente tempos onde imperam demasiadas regras, proibições e um de certa forma absurdo sentido de moral?
Concordo. Uma das razões para o sucesso da série Mad Men é o facto de ser uma série que acontece antes do mundo. Claro que isso tudo que aconteceu foi para melhor, as pessoas usarem cinto de segurança, beberem água, mas agora é chato viver de acordo com as regras. É chato não poder cortar a cabeça do seu inimigo, a civilização é chata, os livros do Freud são chatos. O Mad Men mostrava aquele pessoal bebendo e fumando, sendo horroroso e mesquinho, todo o mundo transando com todo o mundo. É uma nostalgia da liberdade perdida.
Que crónica está ainda por escrever?
Muitas, porque espero escrever pelo menos por mais 40 anos.
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