Em 1931, Walter Benjamin escreveu um ensaio onde falava da experiência de desencaixotar a sua biblioteca, sobre “arte de colecionar”. Em 2018, chega até nós uma reflexão inversa, intitulada “Embalando a Minha Biblioteca” (Tinta da China, 2018), a última obra de Alberto Manguel, que se lê como um manifesto de amor aos livros, à leitura e às bibliotecas.
Manguel retoma a ideia que “todas as bibliotecas são autobiográficas”, presente no seu livro “A Biblioteca à Noite”: “A minha última biblioteca ficava em França, num velho presbitério de pedra, a sul do vale do Loire, numa aldeia pacata com menos de dez casas”. Assim começa a elegia: não num tom de lamento mas antes de confissão, onde a organização da biblioteca se torna um processo vivencial, resultante de uma arqueologia sentimental e afectiva.
A biblioteca de Manguel é privada, intimista e humanista. Um espaço povoado por “criaturas espantosas”, de “silêncio mediativo”, de solidão e de múltiplas palavras que são “o guia que nos indica o que é a traição e o que é a verdade”, de leituras apaixonadas e oníricas. Homero, Calímaco, Platão, Dante, Shakespeare, Kafka, Gabriel Garcia Marques, Borges e muitos outros continuam vivos nas estantes da biblioteca. Como num jardim, esta é um lugar de achados e encontros, de amores e desamores, um mundo colorido e habitado por fantasia e realidade, pelo caos e pela ordem, pelo devir e pela transformação na busca incessante da identidade. Assim compreendemos melhor Manguel quando nos confessa que “a minha biblioteca explicava quem eu era, me conferia um eu sempre em mudança, que se transformava constantemente ao longo dos anos“.
Ao embalar os 35 mil livros, o bibliógrafo argentino reflecte sobre a sua relação com os escritores, a literatura e os livros. Destes momentos chegam até nós dez divagações, por onde passam bibliotecas públicas, escolares, virtuais ou as “dez bibliotecas famosas”, acontecimentos históricos catastróficos, memórias ou simplesmente pequenas anotações ou lembretes, inscritas na biblioteca ou na margem de um livro tais como “Lemos para fazer perguntas” ou “Não emprestes nem peças emprestado“.
O esvaziamento da biblioteca é um processo caótico e, muitas vezes, do caos nasce a ordem. Fica uma certeza e, ao mesmo tempo, uma interrogação deixada por Manguel. Outras bibliotecas irão (re)nascer noutro espaço, um novo contentamento renascerá quando “deambular novamente entre as estantes da biblioteca, feliz por recordar um título aqui e surpreendido por encontrar outro ali?”.
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