Há, no mundo das distopias, uma linha comum entre livros como “Nós”, “Admirável Mundo Novo” ou “1984”: no meio do negrume, da solidão ou dos becos sem saída, cabe ao leitor descobrir uma nesga de luz ou, se o preferir, abraçar o destino trágico que a narrativa parece reservar, atando na sua mente as muitas pontas que encontrou pelo caminho. “Ecologia” (Caminho, 2018), o mais recente romance de Joana Bértholo, tira em parte ao leitor esse poder decisório, fazendo deste livro uma distopia-manifesto, um romance de intervenção, onde a autora dá a conhecer ao mundo a sua posição ecológica e muito crítica perante o desgoverno do mundo.
É, em termos globais, um livro muito bem desenhado e ainda melhor estruturado, que parte de uma premissa de cariz economicista: numa sociedade que se fundiu com o mercado, onde tudo se compra e ainda mais se vende, as palavras ditas vão começar a ser pagas. É uma sociedade sob crescente privatização, onde tudo tem o seu preço, sustentada por um avanço tecnológico que parece não conhecer limites.
Nos corredores do poder e do marketing, decide-se que a privatização da linguagem irá decorrer em três grandes vagas: na Primeira, apenas algumas palavras são privatizadas, anunciadas em blocos comerciais que mais parecem brincadeiras de criança; na Segunda já se paga por tudo o que se diz, havendo que poupar e conter o abrir de boca; na Terceira é como se o corpo fosse, ele próprio, um ecrã, e a linguagem surgisse como uma digitalização da própria palavra.
Pressente-se aqui uma nostalgia pela infância, à pré-moldagem do ser pelo mundo, antes da chegada de um tempo que vive o fascínio generalizado por ver e monitorizar o mundo. Onde se desiste da privacidade em troca de um tímido acrescento de saúde, o terrorismo começa a ser encarado como nota de rodapé e as diferenças entre notícias verdadeiras e falsas é uma linha ténue, escrita com sumo de limão.
Publicidade, jornalismo, o manuscrito Voynich, a ditadura do medo e personagens de carne e osso, num livro sobre o fim dos tempos que pretende abalar o conformismo vigente numa sociedade que está a perder aos pontos para a tecnologia.
2 Commentários
Uma distopia perturbadora. À medida que avançava na leitura, ia ficando cada vez mais inquieto. Assusta, porque percebemos que numa sociedade dependente das redes sociais, indiferente à perda da privacidade e dominada cada vez mais pela IA, o poder totalitário espreita. Um alerta, para que não aceitemos, passivamente, a perda da nossa liberdade e, portanto, da nossa vida.
A imagem que o José Couto (boas) passa/tira do livro é real mas até por ser uma escritora inteligente (Joana Bertholo) a escrever (a computador) ideias ficcionadas sobre um mundo em que a IA cria Venturas se contradiz. Poder ter a liberdade de ler estas ideias é garantia de um mundo melhor. A nossa liberdade e vida não será perdida. E não ficaremos dependentes das redes sociais enquanto existirem José Souto’s e Joana’s Bertholo’s. Abraço, Zé Maria