“As personagens deste romance são fictícias. As circunstâncias históricas que ditaram os preceitos do seu agir são reais. O destino do homem N. S. Rubachov é feito dos destinos de uma quantidade de homens que foram vítimas dos chamados «Processos de Moscovo». O autor conheceu pessoalmente alguns deles. Este livro é dedicado à sua memória.”
É com esta nota prévia, datada de 1940, que Arthur Koestler inicia “Eclipse do Sol” (Livros do Brasil, 2022), que muitos consideram a sua obra-prima, e que agora podemos ler, pela primeira vez, na versão integral, traduzida directamente do alemão a partir dos manuscritos originais do autor.
Logo após a nota, a narrativa começa com o estrondo da porta de uma cela a trancar-se atrás do protagonista, Rubachov, um homem que dedicou décadas da sua vida à luta por uma Revolução, em nome da qual foi preso e brutalizado, e que agora, após um aparente triunfo, se vê acusado de traição contrarrevolucionária.
Na ausência de referências geográficas específicas, poder-se-ia encontrar aqui uma crítica aos regimes totalitários. Porém, mesmo sem a menção inicial aos Processos de Moscovo, há muitos elementos que nos remetem para as purgas estalinistas nos finais dos anos 1930 na URSS, incluindo uma figura política, aqui designada por Nº 1, que conquistou o poder após a morte do velho líder, tendo eliminado os restantes companheiros deste, cujas fotografias vão desaparecendo sucessivamente. Como seria de esperar, também as estantes das bibliotecas são desbastadas ao sabor das tendências ideológicas de cada momento. Soma-se a isso um ambiente de paranoia generalizada, em que uma frase distorcida pode ser denunciada e condenar o seu autor à morte.
É nesse contexto que Rubachov, depois de ter sacrificado outros, se prepara para ser sacrificado. Ciente de que o regime no poder manchou a sua utopia, resta-lhe “acertar contas com o passado e o futuro, com os vivos e com os mortos”. A culpa que o atormenta é um dos temas principais do livro, bem como o debate em torno da ideia de que o fim justifica os meios: irá Rubachov defender os seus ideais e condenar-se a uma execução sem utilidade prática, ou aceitará fornecer a falsa confissão que os interrogadores lhe pedem, para prestar um último serviço ao Partido, servindo-lhe de bode expiatório, para demonstrar às massas ignaras que só os traidores como ele impedem a chegada da felicidade prometida?
Ideologias à parte, é difícil não sentir a mágoa do protagonista, cujas memórias e reflexões estão repletas de amargura e de sarcasmo. Este é um texto que desafia o nosso optimismo em relação ao futuro, retratando a História de modo bastante cáustico: ela é “uma construtora sem moral”, cuja linguagem é “o uivar dos lobos na noite”. Talvez não seja uma imagem aprazível, mas provavelmente é realista. Contudo, seja qual for o sentido que a História siga, este livro ficará certamente na memória dos seus leitores.
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