Foi, no ano de 2020, uma das mais castiças edições nacionais de banda desenhada, que nos apresentou a Raquel Sem Interesse – o nome artístico escolhido por Raquel da Silva Fernandes, licenciada em Artes Plásticas Multimédia na FBAUP, em 2012, e com mestrado em Ilustração e Animação através do IPCA, onde descobriu uma paixão muito particular pelo cartoon.
O gosto pelo desenho e pela criação de personagens – ou bonecos, com gosta de lhes chamar – conduziu-a ao território das tiras cómicas, lugar onde surgiu o projecto Histórias Sem Interesse, que começou como um trabalho para a disciplina de Ilustração e se transformou no projecto final do seu mestrado.
“Vida Adulta” era um livro onde nos ríamos da triste vida de uma jovem precária, impaciente e quase sempre de bolsos vazios. Uma mulher igual a tantas outras mulheres e homens, que trabalhava horas a mais num emprego – que trocaria na boa por um outro que fosse um pouco melhor -, se perdia em dilemas existenciais, gostava de uma boa noitada, tinha um problema sério com as fotografias e não gostava mesmo nada de poupar nas asneiras. Qualquer coisa como o alter-ego de Raquel Fernandes, que servia aqui um pedaço desenhado de autobiografia.
Já este ano, Raquel Sem Interesse regressou às livrarias com “E Agora?” (Iguana, 2023), um livro ao estilo de uma saga familiar onde nos conta a sua história de vida em quatro capítulos, desenhados com diferentes cores dominantes – vermelho (mais cor de vinho), roxo, verde e cinzento – e num crescendo temporal, que vai de brincar com bonecas a não saber como pagar as contas no final do mês.
No primeiro capítulo, recordam-se as amas, as primeiras memórias, a perdição pelas barbies, as quezílias familiares – que levaram mais tarde ao afastamento dos pais -, o bullying imposto pelos “fixes” da escola, os sonhos com as princesas da Disney, a transmissão de valores tão importantes como “antes puta que ladra” ou o primeiro contacto com a morte; no segundo capítulo recupera-se o ano em que Raquel falhou a entrada na Faculdade de Belas-Artes, infortúnio que levou a um ano repetido e a um part-time no surreal telemarketing mas, também, às descobertas do “eu” interior e do amor – mas não sem algumas crises de confiança.
A segunda metade ganha um peso familiar, com a chegada da demência da avó e a separação dos pais, mas mostra-nos também uma Raquel já fora do ninho, com todas as dificuldades e excitações de estar por conta própria – mas bem acompanhada -, onde a divisão de tarefas se torna essencial para evitar futuras crises conjugais. É também um momento de foco profissional, descobrindo-se a primeira referência às “tirinhas” e às Histórias Sem Interesse; a fechar. No capítulo de fecho, Raquel vê-se obrigada a redefinir o conceito de estabilidade, numa corajosa travessia num trapézio sem rede que tira, ao mesmo tempo, o retrato a gerações que viram tudo andar para trás.
O epílogo a preto e branco, já depois do embrulho final, faz-nos acreditar que há mais coisas boas a caminho. Até porque esta Raquel, afinal, tem todo o nosso interesse.
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