Percebemos que Rafael Gallo é um escritor excepcional logo nos primeiros parágrafos de “Dor Fantasma” (Porto Editora, 2023), que nos transportam para o interior do auditório de um concerto. Não é fácil transmitir as impressões causadas pela música, mas o autor consegue-o magistralmente, recorrendo a um vocabulário riquíssimo para associar as ondas sonoras a toda uma panóplia de impressões sensoriais: a partir da partitura de Funerais, de Franz Liszt, nascem notas agudas que gotejam, graves que se erguem num marulho, uma harmonia que ascende em espirais e uma “evocação de sinos antepassados a dobrarem por mortos nos campos de batalha”. Quando o pianista responsável por esta proeza, Rómulo Castelo, “um dos maiores intérpretes de Liszt”, abandona o palco sob uma salva de palmas, leva consigo um sorriso triunfante no rosto e a ignorância de um facto que o narrador adianta, suscitando a nossa curiosidade de uma forma que nos prende definitivamente ao livro: a sua carreira acabou nesse instante e mais nenhuma nota executada por ele será ouvida em público.
Rómulo Castelo é um protagonista inquietante. O pai, maestro, direccionou-o desde cedo para uma carreira musical, incutindo-lhe a valorização do rigor e da disciplina. Desejoso da aprovação paterna, o rapaz absorve o seu ideal de excelência como referencial para a vida, transformando-se num misantropo sem a mínima empatia pelos outros: impaciente e implacavelmente exigente com os alunos, frio com a esposa – uma ex-secretária que ele nunca deixou de ver como subordinada – e desumano para com o filho de oito anos, cujo nascimento prematuro deixou sequelas físicas e mentais que lhe causam repulsa. Por mais que admiremos a magnitude da sua dedicação à música e concordemos com algumas das suas críticas ao facilitismo, é impossível apreciá-lo enquanto pessoa.
O isolamento acústico da sala de estudos da casa familiar, onde se une ao seu precioso piano, simboliza a sua separação radical dos seres humanos que o rodeiam. Lá dentro, pratica diariamente a Rondeau Fantastique, conhecida como “a peça intocável” de Liszt, que mais ninguém conseguiu executar desde a data da sua apresentação e que Rómulo anseia tocar dentro de poucos meses, numa digressão europeia, revelando-se o maior intérprete daquele compositor.
Porém, no dia em que um imprevisto o faz desviar-se do plano diário, concretiza-se a tragédia anunciada: à saída da universidade onde lecciona, um acidente destrói-lhe a mão direita e, em consequência, a identidade. O pianista de renome é agora “o amputado”, e a dor fantasma sentida no espaço antes ocupado por aquela mão, “moldada por anos a fio à perfeição”, é também composta pelo desespero da perda de si próprio. Desprovido do seu lugar no mundo e não conseguindo encontrar outro, por ser incapaz de aceitar aquilo que considera medíocre, Rómulo torna-se, ele próprio, um fantasma, assombrando espaços aos quais já não pertence.
A narração do acidente é outro momento marcante, mas todo o texto – vencedor do Prémio Literário José Saramago 2022 – é um portento. As descrições do quotidiano do protagonista, antes e depois da amputação, dos meandros da sua mente, das suas crueldades e da espiral de comportamentos auto-destrutivos em que acaba por cair, compõem um dos retratos mais angustiantes que conhecemos do descompasso entre a fragilidade humana e a obsessão pela perfeição.
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