“Meus Filhos já fizeram as pazes?”. É esta a pergunta colocada por Zana, poucos dias antes de morrer. Alguém que “teve de deixar tudo. O bairro portuário de Manaus, a rua em declive à sombra de mangueiras centenárias…o lugar que, para ela, era quase tão vital quanto a Biblos da sua infância”.
Baseado na obra do escritor brasileiro Milton Hatoum, “Dois Irmãos” (G. Floy, 2019) conta a história de dois gémeos que, aos 13 anos, se vêem separados pelos pais, ficando marcados a ferro quente de formas bem diferentes. Yaqub foi para o Líbano ancestral com Halin, o pai, enquanto que Omar permaneceu no Brasil com uma mãe que emprestou, à palavra “possessiva”, um significado ainda mais apertado.
Tratou-se, igualmente, de uma separação motivada por uma rixa que resultou numa feia cicatriz, motivada por questões de saias que mostram sempre o lado mais negro e tenebroso dos jovens rapazes. Distância imposta pela mãe perante um pai – “um náufrago agarrado a um tronco, longe das margens do rio, arrastado para uma uma lagoa sem fim” – que não quis ou não se conseguiu impor, e que segundo a mãe iria apagar o ódio e o ciúme. A verdade é que, cinco anos depois, Yaqub regressa ao Brasil transformado, olhando para o país como um lugar estranho e para o irmão como alguém que continua a detestar.
Uma história sobre identidade, amor, perda, traições, dramas familiares, segredos mal enterrados e desejos de vingança, que tem lugar na Manaus dos anos 1950, cidade ocupada pelos militares, e que é narrada por Manjun, filho de Domingas, a filha adoptada de Halin e Zana, para quem “os dois nasceram perdidos”. Um narrador de corpo inteiro, entregue à escrita, que rejeita a ideia de futuro e que, entre outras pérolas, oferece divagações como esta: “Alguns dos nossos desejos só se cumprem nos outros. Os pesadelos pertencem-nos a nós mesmos”.
Fábio Moon consegue preservar a força narrativa de Hatoum nesta adaptação a romance gráfico, enquanto Gabriel Bá mergulhou no espírito das fanzines e no espírito punk para nos oferecer um jogo de luzes e de sombras, contrastes que tão bem definem e moldam estes dois irmãos que nunca o quiseram ser. Literatura do melhor servida aos quadradinhos.
“Dois Irmãos” levou para casa o prémio Eisner para Melhor Adaptação Literária, o prémio Harvey para Melhor Álbum Estrangeiro e o Troféu HQ Mix para Melhor Adaptação.
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