Conhecido por obras como “Viagem ao Fundo do Coração” ou “Inquietude”, o britânico William Boyd traçou um percurso literário marcado por um assinalável e muito competente conjunto de narrativas onde o amor, a paixão, é uma vincada imagem de – e que – marca.
O seu mais recente livro, “Doce Carícia” (D. Quixote, 2016), tem como figura central a fotógrafa Amory Clay, e conta-nos a sua vida desde 1908, data do seu nascimento, até 1977, altura em que, quase septuagenária, olha, narra e reflecte sobre a sua atribulada existência a partir do seu retiro de campo algures numa ilha ao largo da costa oeste da Escócia. A história evolui, sem respeitar a normal ordem do calendário, e onde presente e passado se confundem num puzzle emotivo e emocional que traz à tona a revelação de muitos segredos.
Armory Clay teve uma existência épica, num constante rebuliço, através de um século XX pejado de surpresas e que levou a nossa repórter a percorrer o globo e a derrubar fronteiras entre Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos da América, México, França, Escócia e Vietname. Com uma carreira pejada de aventura, Clay testemunhou – e registou – alguns dos maiores eventos da história recente, incluindo no seu currículo pedaços da Segunda Guerra Mundial que marcaram a vida de todos. E foi esse “fogo amigo” que cravou estilhaços na vida de alguns dos homens mais próximos de Armory (o seu pai, o irmão e o marido), deixando cicatrizes profundas na sua alma.
A sangria começa logo nas páginas iniciais do livro, com uma Armory, aos 19 anos, a sentir o fel do desamor quando se apaixona sem ser correspondida. Como um murro no estômago, depressa vai perceber que a vida é uma teia complicada de emoções, derrotas e vitórias e que convém ter noção de que ver apenas aquilo que se quer leva a erros irremediáveis.
Essas falhas, sub-reptícias ou mais evidentes, dominam todo o romance e, por conseguinte, a vida da protagonista. Existem também, claro está, observações casuais que podem alterar o âmago de qualquer relação, reflexões sobre a pertinência (ou não) da vida militar ou de complexas manobras profissionais que podem colocar em causa um profundo impacto financeiro.
Dada a estrutura e estilo narrativo de “Doce Carícia”, não resistimos a fazer uma quase inevitável comparação com o principal visado do já referido “Viagem ao Fundo do Coração”, pois as vidas de Armory Clay e Logan Mountstuart fazem uma admirável tangente e, em ambos os casos, Boyd faz o seu universo criativo girar em torno de uma interação entre figuras históricas reais e outras nascidas da ficção.
Neste tipo de abordagens existe sempre um risco (calculado ou não) de algumas perdas individuais e estruturais dos próprios personagens, mas “Doce Carícia” ultrapassa essa questão sem mácula e faz o leitor percorrer uma história rica e bem montada onde o tempo não pára e as emoções andam à solta, em desalinho. Esse dinamismo hábil e a sua construção cinematográfica deixam mesmo a ideia que não fará muito tempo para vermos a estória criada por Boyd no grande ecrã.
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