Há muito que se discute, em alguns círculos eruditos por esse mundo fora, qual a mais velha profissão do mundo. Ora se, pela força trágica das circunstâncias, atribuímos à mulher a ancestralidade da prostituição (mito pré-colonial/mundo globalizado/neoliberal aspirante a pós-histórico onde se caminha para a liberdade de identidade de género plena,) teremos que atribuir ao homem-branco-cis-hetero (quem mais? – pergunta Clooney, quebrando a quarta parede enquanto bebe a pior bica inflacionada do mundo) a invenção do adultério enquanto profissão a tempo parcial. A pergunta que se impõe é: quanto do que acabaram de ler é ironia ou apenas estupidez absoluta?
Em tempos conhecidos como Pauliteiros, esta estirpe derivada da proto-produção daquilo que viria a ser o palito moderno, assim como dos ancestrais produtores de cornos – viquingues – para ingestão nociva de hidromel, tal estirpe sobreviveu ao passar dos tempos sob os mais diversos desígnios: da mais brejeira gíria, passando pela mais sentida proferida exclamação ‘seu desgraçado de merda’, ao termo mais esclarecido: adúltero.
Em “Dicionário Sentimental do Adultério” (Quetzal, 2017) Filipa Melo, que passou já pelos maiores grupos de comunicação social portugueses, pode muito bem ser autora do candidato peso-pesado a livro do ano editado em Portugal.
Intrigante e dotado de um humor algures entre o ressabiado e o génio cómico (quiçá se não serão inseparáveis), o dicionário em questão, que é literatura pura, diga-se, é uma sequência de entradas por ordem alfabética que parecem um crescendo de expurga (a última entrada é ‘Zeus’), coisa estranha se pensarmos que A ou C pode muito bem expurgar da mesma forma que X, Y ou Z. Isto para dizer que, a narrativa, a ser criada pelo leitor, é sempre potenciada por Melo, mesmo a autora estando munida de toda a investigação e verossimilhança a que se presta um dicionário.
Ainda que munido de catarse, chegados à recta final, não há como senti-la (a náusea, o vómito, o riso) desde o início. Talvez Filipa Melo tenha conseguido o feito de se rir de si mesma e dos seus demónios, ou, dos de alguém chegado (já que o elefante na sala é domesticado por toda a gente, seja por pensamentos e palavras, actos ou omissões.) Nisto, fixou em texto o maior desabafo-subtexto da história da literatura portuguesa. Mas especulamos. Às tantas isto é só trabalho de repórter aliado ao rigor académico e aos passos rebeldes num mundo que ensandeceu à pála desse mesmo rigor e integridade moral. O dicionário questiona e nós questionamos com a autora.
Para rematarmos o texto, basta o título de uma das primeiras entradas do dicionário: “Arendt & Heidegger – O affair críptico entre uma judia antifascista e um apoiante nazi.”
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