Quando, daqui a centenas de anos, os historiadores e leitores do futuro se dedicarem a saber mais sobre uma pandemia baptizada de Covid – isto se ainda houver planeta para tal -, muitos vão ser os artigos de jornal, blocos noticiosos, livros e outra série de fontes e desabafos incatalogáveis. Uma das fontes a consultar poderá bem ser este “Diário de uma Quarentena em Risco” (PIM! edições, 2021), um diário gráfico de cartoons onde Nuno Saraiva nos conta, num passeio que vai de Março de 2020 a Fevereiro de 2021, a sua travessia pessoal por entre esta pandemia, onde foi também apanhado pelo bicho.
“Nas crises, procuramos respostas, às cegas as exigimos, e os ilusionistas oferecem-nas – e, com elas, instruções para o futuro, sem avisos de pagamento no fim do espectáculo. De tão amedrontados com a ameaça global do novo coronavírus, do sofrimento e morte daqueles que amamos, e camuflados numa ideia de autodefesa, transformámo-nos em seres dissimulados. Na mesma hora em que cantávamos «Vamos ficar todos bem!», pensávamos, sobre estranhos: «Por culpa daqueles pagam os outros!» – e os ilusionistas aproveitam a hora, na hora certa.”
Palavras de Nuno Saraiva, auto-denominado “cartunista nas horas vagas”, que na apresentação deste diário fala também do “algoritmo censor”, das reacções violentas que recebeu a alguns destes cartoons que foi publicando nas redes sociais – compensadas por muitas manifestações de afecto – ou de alguns exemplos do que considera terem sido a “falha dos valores”. E, mesmo que pelo caminho tenha perdido “um certo optimismo na forma como encaro o nosso sistema e me relaciono com ele, no que respeita à ideia de vida em comunidade e ao modo como tudo isto está a determinar os dias em que vivemos”, continua a dizer que “o amor e o humor, esses, cá continuam”.
Antes de percorrermos cada um dos meses, somos prendados com um resumo, ao estilo de um boletim noticioso, do que iremos descobrir lá dentro, entre obituários, leis publicadas, petições e a chegada de novas vagas. Há de tudo, em desenhos sempre retratados com o humor, a ironia e o sarcasmo deste cartoonista temporário: o estado de emergência, o reforço da autoridade, as novas salas de aula, a reinvenção do 25 de Abril, a vida negra dos promotores – e intervenientes – culturais, o renascimento dos populismos, a bazuca europeia, a descoberta da vacina, o excesso de zelo ou as habituais e sempre inventivas fintas tugas ao sistema. Um livro que teria merecido uma outra edição, em capa dura e onde os desenhos pudessem ser vistos sem um vinco ao meio.
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