Nascido em Munique no ano de 1975, Daniel Kehlmann – autor do bestseller “A Medida do Homem”, um dos maiores sucessos literários em língua alemã – tem sido carregado ao colo por gente como Ian McEwan ou Jonathan Franzen, levando para casa prémios como o Thomas Mann, o Die Welt, o Candide, o Kleist ou o Doderer. Após a leitura de “Devias Ter-te Ido Embora” (Bertrand Editora, 2019), livro que não ultrapassa as 100 páginas, percebe-se o porquê de tanto aparato.
Um escritor, a sua mulher e a filha de ambos, com quatro anos de idade, alugam uma casa nos Alpes, para uma mistura de férias em família e compromisso profissional, onde está em causa escrever a sequela do filme mais famoso do escritor, intitulado “Melhores Amigas 1”. Pouco tempo depois de desfazerem as malas, este repara que coisas estranhas se passam na casa, ao estilo de um Poltergeist arquitectónico/literário: as divisões da casa mudam de lugar e, no seu caderno, começam a aparecer palavras que não foram escritas por si.
Quando entra numa loja para comprar provisões, vê-se brindado com uma estranha pergunta, isto depois de o dono saber que está a passar férias naquela casa: “Já aconteceu alguma coisa?”. Dono que, após o pagamento da praxe, lhe oferece um transferidor e um conselho: “Experimente o ângulo recto”.
Trata-se de um livro singular, polifónico e no limite, que viaja entre o real e o fantástico, entre os mundos exterior e interior do ser humano, entre a consciência e a pura loucura, e que tanto promove um diálogo do autor com o próprio acto da escrita – “O Sol tinha acabado de sair de trás das nuvens, de modo que agora o céu se dilui numa luminosidade dolorosa, cintilante, magnífica. Ou isto serão demasiadas metáforas? O Sol não sai de trás de nada, o vento afasta as nuvens e, como é óbvio, o céu não se dilui de modo nenhum. Mas numa luminosidade dolorosa, cintilante, magnífica não é mau.” – como questiona a ideia de amor, família e relacionamentos – “Amo-a, e não gostaria de ter uma vida diferente. Porque estamos constantemente a discutir?”.
Parecemos estar diante de uma conversa ao espelho, do questionar de opções tomadas, onde pela escrita e num exercício de deformação da linha temporal o autor possa avisar-se a si mesmo sobre os perigos que a existência reserva: “Mas talvez deste modo o possa avisar, ou seja, a mim, ou seja, àquele que eu era ainda há pouco; talvez lhe possa dizer através do tempo ondulante: Vai-te embora. Gritar-lhe: Vai-te embora, antes que seja demasiado tarde, murmurar, berrar, que não se preocupe com o filme, mas que abra os olhos e veja onde está. De algum modo, conseguir alcançá-lo, até que me oiça, até que me leia, até que veja, até que compreenda”.
As palavras, porém, depois de verem revelados todos os seus truques e artifícios, mostram-se insuficientes nesta tentativa de preservação da memória, quando posta diante da loucura e da incerteza: “Escreve isso para te lembrares, para nunca poderes dizer que foi pura imaginação. Mas enquanto escrevo, penso que deve ter sido imaginação. (…) Palavras. Elas não captam como as coisas são na realidade”.
Filosofia e romance, existencialismo e niilismo, num livro que coloca o leitor diante do espelho em diálogo: com aquele que já foi e com um outro no qual ainda não se tornou. Literariamente fascinante.
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