A prosa millasina (assim lhe chamam na contracapa) é dona e senhora de um ritmo com avanço contínuo de rio. “Desde a Sombra” (Planeta, 2016) embala os seus diálogos nesse percurso até ao delta e alto mar, com pouca aproximação às margens.
Pode ser que você, leitor, se sinta desorientado. Caso não seja por falta dos habituais psicotrópicos prescritos, pode ser que, à semelhança de uma conversa arrebatadora com uma mulher (ou homem) que lhe seduz, ou antes, num diálogo com alguém bem ou mal intencionado que demonstre um transtorno mental, pode sentir uma pontada alarmante de agorafobia ou um sangramento espontâneo pelas narinas que, surgindo na eminência de um bom romance como este, é sinal de boa saúde da tola – mais ainda que levar os filhos e sogros à missa dominical como um bem comportado João Miguel Tavares.
Juan José Millás aborda, na sua simplicidade que mais não é que virtuosismo puro, um portento ideológico sob um manto político, de comentador ou cronista, de onde resulta um incandescente narrativo que é povoado por almas penadas num delírio mais vivo que a gema dos dedos que tocaria o vosso corpo suado, caso escolhessem ter um génio simpático vinte e quatro sobre vinte e quatro. Isto que acabaram de ler, com a toda a intenção, foi absurdo. No entanto, o absurdo deste mago literário de nuestros hermanos, mais alienado das massas (macarrão grande ou tagliatelle) de justiça indecente, é mais poderoso quando se mescla com o realismo mundano que pauta o desenrolar dos acontecimentos narrados. Mergulhamos de cabeça sem águas a amortecer a patologia.
A norma dos loucos passa por pensar na terceira pessoa e achar a psiquiatria o irmão inconsequente da medicina ocidental. Comprimidos que entram na boca e ficam guardados debaixo da língua até serem cuspidos às escondidas. À semelhança disto, o universo literário de Millás é perigoso. É humano com o louco e o nosso formato de vida ocidental requer sempre um protagonista e um antagonista. Esta bússola orientar-vos-á sem norte.
Da simples obsessão à mais dura psicose que atravessa dimensões onde as leis da física cessam de existir, Millás contorna premissas e ignora a consistência da trama. É o delírio dionisíaco que dota os melhores cronistas do seu tempo e que o torna livre. É o que faz dele, quiçá, o melhor autor espanhol vivo. Que se repita até alguém acreditar.
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