Novela gráfica sem uma única palavra, “Desde 1880” (Kalandraka, 2021) é um incrível álbum sobre a passagem do tempo, numa viagem de poucas páginas onde o leitor percorre quase século e meio. Pelo caminho, este álbum que levou para casa o XIII Prémio Internacional Compostela Para Álbuns Ilustrados conta várias histórias e presta uma série de homenagens, num silêncio que deixa atrás de si um rasto infindável de palavras – quase romances – nunca proferidas.
São, ao todo, 14 ilustrações, espaçadas uma década entre si numa linha temporal contínua, que nos fazem viajar entre 1880 e 2010, e isto sem nunca sair do mesmo lugar. Como aqueles fotógrafos que, mantendo a câmara apontada ao mesmo lugar, nos vão dão conta da passagem do tempo, e de como este se encarrega de abalar tradições, erodir relações ou transformar, para o bem ou para o mal, a sociedade.
Estamos, presume-se, numa cidade do Ocidente, que nos mostra o mesmo cenário durante 140 anos: do lado esquerdo, uma livraria; ao centro, um edifício antigo, onde por cima se encontra um sisudo busto de pedra, correspondendo a Cronos, o deus do tempo; do lado esquerdo um edifício que parece desocupado, e que vai ganhando vida na passagem da noite para o dia.
Ao longo das páginas, o leitor irá assistir a várias transformações, seja no vestuário, que vai do uso de cartola ao pausado cap (ou à máscara protectora contra pandemias), ou nos meios de transporte, de carruagens puxadas por cavalos aos carros em tamanho de quase miniatura.
A história está também presente nestas páginas, através de pormenores que se vão descobrindo após múltiplas leituras: as duas grandes guerras, a pandemia da gripe de 1918, a chegada do Homem à lua estão entre os vários episódios, onde não faltam pistas sobre outros acontecimentos transformadores (como referências artísticas ou aos computadores).
Nas entrelinhas, Pietro Gottuso lança um debate (surdo) sobre a globalização, e também um alerta de como, perante epítetos como progresso ou dinâmica de mercado, há-que proteger algumas das coisas mais essenciais e transformadoras que a humanidade viu nascer: como as livrarias.
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