“Descobri que estava morto enquanto tentava escrever um livro. Ainda não era este livro.” É assim, “a matar”, que João Paulo Cuenca, considerado pela revista Granta um dos melhores jovens autores brasileiros, abre as hostilidades no seu romance “Descobri que Estava Morto” (Caminho, 2016), editado pela Caminho. Um livro que é um jogo inteligente, estranho e lúcido que não se fica pelo policial existencialista, como se fosse pouco, mas que se move com uma perspicácia acutilante pelas fragilidades de um Rio de Janeiro alicerçado no desequilíbrio, da criação literária e da vida, claro.
Somos imediatamente seduzidos pela premissa catalisadora do romance: o autor enquanto personagem Cuenca é, um belo dia, informado da sua morte, oficial, com toda a papelada, um facto que lhe é atirado para as mãos pela polícia, como uma granada, num diálogo tão surreal e absurdo como a situação em si. Obviamente, a granada explode, porque isto de informarem um escritor da sua morte não poderia deixar de ter consequências. Segue-se uma busca febril pela verdade sobre as circunstâncias do mistério da morte do homem que lhe roubou a identidade, à maneira do bom thriller ritmado e paranóico, comparável, segundo o autor brasileiro Silviano Santiago, a Polanski. A ligação ao cinema é bem notória, não só a nível das referências na narrativa, mas também pelo facto de este livro vir com filme, já que, em 2014, o autor assinou o argumento e a realização da longa-metragem “A Morte de J.P. Cuenca”.
A resolução do mistério é também um pretexto para a crítica social, para um retrato ácido do Rio de Janeiro onde, lado a lado, convivem as festas da elite endinheirada e alienada e os disparos no morro, onde se criam ilhas de privilégio burguês numa cidade claramente desigual. E, com a proximidade dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio e as preocupações que têm rodeado o evento, a leitura deste romance acaba por ser particularmente pertinente e interessante, levantando questões de digestão difícil mas necessária. Esta reflexão social permeia todo o romance, enquadrando-se na perfeição com as restantes tapeçarias narrativas e revelando o talento inquestionável de Cuenca na criação de uma obra multifacetada que nunca perde o fio à meada ou o ritmo e com um estilo impecável e sólido marcado pela tensão e pelo desconforto Kafkiano.
Porém, falta mencionar o mais importante nesta estranha história do falecido Cuenca. A morte do autor-personagem implica um afastamento da realidade que traz uma lucidez cortante sobre a sua própria vida: as relações pessoais, a profissão de escritor em constante angústia, entre a página em branco, fatal como o destino, e os périplos pelo estrangeiro, ou a imagem por vezes cruel que tem de si mesmo. E como é espantoso João Paulo Cuenca na forma como se liberta através de uma falsa morte para um exercício literário soberbo a ser lido numa vertigem constante.
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