Já alguma vez pararam para pensar na importância da memória? Nós somos, em grande medida, a soma das nossas recordações: são elas a matéria da nossa história de vida. Alegres ou tristes, justificam as nossas escolhas e amparam-nos os sentimentos. Algumas memórias são velhas amigas, apoiam-nos com pancadinhas nas costas e sorrisos nos lábios; outras são velhacas, insubmissas, sempre à espreita da oportunidade para nos magoar. Uma coisa é certa: sem memória, não somos ninguém.
Madalena Sá Fernandes sabe disso. Depois da estreia promissora em 2023 com o romance “Leme”, a escritora lança agora o segundo livro, “Deriva” (Companhia das Letras, 2024) — uma colecção de crónicas originalmente publicadas em órgãos de imprensa nacional, às quais se juntam alguns inéditos.
Se há um tema comum em “Deriva”, é precisamente a memória. O rastilho é a própria vida da cronista, as pequenas coisas que servem de pretexto para falar das grandes questões. Estas dezenas de crónicas reflectem o olhar de alguém com uma sensibilidade literária muito apurada, capaz de escrever com grande ternura — como quando conta as lembranças da avó —, mas também de usar a ironia e o sarcasmo mais ácido: leiam-se as hilariantes divagações sobre ginásios, gurus da auto-ajuda e um cão chamado Jesus, por exemplo.
Algumas crónicas revelam um gosto pelo experimental, sem medo de mexer com estruturas e convenções para atingir determinados efeitos. Com elas, a escritora demonstra o seu virtuosismo e imaginação. O que se mantém constante é o carácter relacionável da sua escrita: quando descreve o primeiro amor, as memórias de infância ou a tendência para a distracção, fala de características muito particulares, mas também universais.
O mérito acrescido de Madalena Sá Fernandes é o de escrever sempre com sensibilidade, cuidado e graça. Ao longo do livro, é um prazer ler a sua escrita de rajada, escrita honesta, sem máscaras nem véus, de uma sinceridade por vezes desarmante, como se lêssemos cartas amarrotadas contendo as memórias de uma grande amiga.
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